Texto original escrito por autor anônimo, postado originalmente no fórum de jogos tradicionais do 4chan em 5 de janeiro de 2013.

Nossa campanha começou com apenas um pouco de floreio. Nosso Mestre do Jogo se anunciou como o maior Deus em um grande panteão, que habitava em um tempo e espaço que nenhum outro deus poderia alcançar, julgando os feitos de todos os seres inferiores. Por sua mão, o universo girava e, por sua palavra, todas as coisas tremiam.

Na verdade, isso foi bastante moderado em comparação com seu drama habitual.

Cada um de nós assumiria o papel de semideuses, meio-deuses, quase-deuses, ou como quiser dizer que não éramos deuses de verdade. Nosso maior poder seria a imortalidade, que nos permitia caminhar dentro do reino dos Deuses Maiores e também nos impedia de sermos realmente mortos por qualquer coisa menos do que os meios terríveis necessários para matar um deus.

Nossos corpos, não mais fortes do que os de homens comuns, ainda poderiam ser destruídos no reino mortal, mas nós simplesmente nos reformaríamos nos Salões dos Imortais.

Nosso outro poder dependia de qual deus serviríamos. Depois de muita discussão, conseguimos chegar a um acordo sobre nossos personagens.

O primeiro a decidir foi o semideus Qorg, um servo do Deus da Guerra. Sua escolha de poder foi simplesmente grande força.

O próximo foi Handelhan, um servo do Deus do Conhecimento. Sua escolha foi a capacidade de ler mentes, e nosso Mestre do Jogo se certificou de que ele entendesse que seu poder, e todos os nossos poderes, não poderiam ser usado em seres divinos, mas apenas em mortais.

Após pensar um pouco, Pleth surgiu como um servo do Deus da Natureza. Ele podia dar movimento às árvores, permitindo que elas se movessem de acordo com sua vontade ou com a vontade delas.

Por fim, decidi servir ao Deus do Desejo, como o quase-deus Cym. Minha habilidade seria convencer os mortais de que eles poderiam satisfazer um de seus desejos com outra coisa. Se eles estivessem com fome, por exemplo, eu poderia lhes dizer que um copo de água saciaria sua fome.

Com nossos personagens definidos, nosso Mestre do Jogo explicou que, embora servíssemos aos deuses, também buscávamos suas posições e poder, e cabia a nós decidirmos como trilhar esse caminho tortuoso de subserviência e subterfúgio.

Nós, os quatro semideuses, percebemos facilmente os benefícios de trabalharmos juntos e, quando Qorg começou a esculpir uma fortaleza no topo de uma montanha com suas próprias mãos, discutimos o método que adotaríamos para obter a verdadeira divindade. Um século se passou até que Qorg estivesse satisfeito com nossa Cidadela, mas foram necessários mais dois para que nosso plano estivesse pronto para ser colocado em ação.

Handelhan passou seus três séculos reunindo conhecimentos sobre os deuses, aprendendo o que podia sobre suas naturezas. Dez das maiores câmaras de nossa Cidadela se tornaram a Biblioteca do Conhecimento dos Deuses, repleta de estudiosos mortais que acreditavam que investigar a natureza da divindade revelaria a verdade do mundo. Esses estudiosos trabalharam arduamente em suas contemplações, mas ouso dizer que, embora tenham revelado inúmeras verdades interessantes sobre os Deuses, nenhum deles morreu satisfeito.

Pleth era do tipo errante e, na verdade, não gostava muito da montanha. Ele nos ajudou de várias maneiras, fornecendo à nossa cidadela móveis e prateleiras vivas, e até conseguiu produzir uma árvore que produzia livros em branco em vez de nozes ou frutas. Mas, além disso, ele era indiferente e distante, aparecendo apenas uma vez a cada década ou mais para checar suas árvores. Acho que parte dele estava em conflito, pois ele se perguntava se o fato de se tornar o Deus da Natureza era realmente o melhor para a Natureza, e muitas vezes eu desejei que meu poder pudesse agir sobre ele.

Qorg passou seu tempo após terminar nossa fortaleza dormindo. Ocasionalmente, ele acordava, descia a montanha, lutava em qualquer guerra disponível, morria, ressuscitava e voltava a dormir.

Passei a maioria do tempo descobrindo as limitações de minha habilidade. A principal restrição era que eu só podia mudar os desejos para erros razoáveis. Eu não podia fazer com que alguém cansado desejasse correr em vez de dormir, mas podia fazer com que alguém que realmente quisesse maçãs pensasse que queria peras. Eu não podia aumentar o desejo de alguém, nem diminuir seus desejos, e acho, embora não tenha certeza, que toda vez que eu usava meu poder, a pessoa afetada ficava um pouco menos feliz.

Com três séculos de planejamento atrás de nós, era hora de agir, de nos estabelecermos como os novos deuses da Guerra, do Conhecimento, da Natureza e do Desejo.

Nosso primeiro passo foi uma diminuição geral da adoração. Tivemos que reduzir o poder dos deuses que servíamos para limitar o quanto eles poderiam interferir em nossos planos. Ao reduzir a quantidade de seguidores desses quatro Deuses, pudemos então formar novas seitas de adoradores que adoravam aspectos específicos dos Deuses, ou seja, nós.

Reduzir a adoração à Natureza foi fácil. Com Qorg à frente, passamos 50 anos liderando exércitos para destruir culturas tribais. Pleth, para não levantar suspeitas sobre o Deus a quem servia, não participou dessa campanha. Isso também foi bom por outro motivo, pois massacramos muitas pessoas de vários níveis de inocência que genuinamente adoravam a Natureza.

Foi durante nossa última campanha que encontramos outro semideus, que tentou se opor a nós. Nosso exército foi cercado por todos os tipos de animais e teríamos sido derrotados se Qorg não tivesse simplesmente marchado sozinho até o acampamento inimigo e esmagado o semideus inimigo jogando um bisão nele. Para nossa sorte, o semideus sobreviveu, embora com o corpo em frangalhos, e após submetê-lo a alguns sedativos, Handelhan o arrastou de volta para a Biblioteca de Conhecimento dos Deuses.

Com a maioria das sociedades tribais com uma fração do tamanho que tinham antes, a adoração à Natureza havia diminuído rapidamente. Pleth havia sido ordenado por seu Deus a fazer o que pudesse pelos adoradores remanescentes e, em apenas uma década, havia pequenos santuários dedicados ao próprio Pleth, embora fosse por meio da imagem de uma árvore com um grande olho no centro do tronco.

Em seguida, tentamos o Desejo. No entanto, não foi tão fácil. Havia poucas pessoas que adoravam o Desejo, pois meu Deus não era exatamente um dos principais atores do grande panteão. Os únicos santuários dedicados ao Desejo eram pequenos e muitas vezes escondidos, e todos tinham um design bastante sensual (o que, na verdade, tendia a diminuir a adoração genuína).

Tentamos resolver a questão da diminuição da adoração ao Desejo financiando ordens ascetas, mas depois de três décadas sem uma gota de mudança, abandonamos essa ideia. Talvez nosso plano tenha fracassado porque a adoração ao Desejo já era pequena, mas acho que foi mais um caso em que essas ordens ascetas simplesmente não tinham uma influência grande o suficiente e, talvez, ao fornecer-lhes fundos adicionais, conseguimos reduzir sua capacidade de resistir ao Desejo.

No entanto, essas três décadas não foram desperdiçadas. Pleth reuniu um número razoável de seguidores, especialmente depois que Qorg, em um novo manto, ajudou a defender suas tribos dos remanescentes de nosso antigo exército. Com uma quantidade substancial de adoradores, Pleth obteve um novo poder, a capacidade de acelerar o crescimento das árvores de anos para meras horas. Em combinação com a capacidade de animá-las, Pleth poderia criar um pequeno exército onde quisesse, mas ele tinha algumas dúvidas quanto a isso. Ele não achava sensato militarizar as forças da Natureza, e concordamos em não abusar da sorte com forças sobre as quais não tínhamos controle total.

Handelhan também estava bastante ocupado. Com o corpo do semideus controlador de animais sob constante sedação e vários estudiosos trabalhando sem parar para fazer experimentos com ele, ele fez grandes avanços na capacidade de transferir a essência divina de uma pessoa para outra. Embora nada realmente útil ainda, Handelhan nos prometeu resultados até o final do século.

Colocamos o Desejo em segundo plano e decidimos que seria um bom momento para nos concentrarmos em reduzir o poder do Deus do Conhecimento. Handelhan fez isso de maneira bastante simples, indo a cada uma das grandes escolas e examinando a mente de todos os professores, procurando as pessoas mais inteligentes. Com a minha ajuda, conseguimos convencê-los de que eles não queriam ensinar ninguém, mas sim continuar suas pesquisas em outro lugar. Estabelecemos uma academia com as mentes mais brilhantes que encontramos e, com Handelhan e eu trabalhando incansavelmente, lentamente os pressionamos a pesquisar coisas que ajudariam nossos objetivos.

Os professores que se recusaram a se juntar a nós, mesmo após eu ter tentado persuadi-los e de Handelhan ter tentado usar seu conhecimento dos segredos mais íntimos deles para chantageá-los, foram simplesmente removidos. Após quarenta anos, a diminuição da educação e do conhecimento geral era bastante tangível, e Handelhan foi convocado para uma grande reunião do Deus do Conhecimento e de todos os semideuses que o serviam.

Handelhan foi poupado de qualquer culpa graças ao fato de ter ajudado a fundar um dos últimos redutos do Conhecimento, embora nossa academia fosse mais uma prisão intelectual do que qualquer outra coisa. Sem informações suficientes para agir, o Deus do Conhecimento encerrou a reunião sem decidir nada. No entanto, a reunião se mostrou bastante útil para nós, pois Handelhan descobriu um oponente na forma de um semideus chamado Maleon.

Maleon estava certo em pensar que Handelhan estava realmente trabalhando contra o Deus do Conhecimento, mas Handelhan era surpreendentemente hábil em se fazer de bobo. No final da reunião, as acusações de Maleon não tinham conseguido nada além de incitar Handehan a marcá-lo como o segundo semideus a ser adicionado à sua coleção.

A captura de Maleon foi quase que fácil demais. Embora Maleon seja imune aos nossos poderes devido a sua divindade, ele escolheu viver entre os mortais e até mesmo escolheu uma esposa mortal. Handelhan conseguiu se aproximar dela e ler suas memórias, descobrindo cada um dos pontos fracos de Maleon. Handelhan também pediu que eu tentasse direcionar o afeto dela para longe de Maleon e para ele mesmo, mas eu disse a ele que não consegui, pois preferia que ele pensasse que eu era fraco em vez de não cooperativo.

No final, um semideus cujo único poder era ler livros em um ritmo acelerado provou ser uma captura bastante fácil. Com a ajuda do conhecimento adquirido da esposa de nosso alvo, Qorg conseguiu entrar sorrateiramente na fortaleza de Maleon e subjugou-o sem muita dificuldade. Depois que Maleon foi sedado e trazido de volta à nossa Cidadela, Handelhan começou a fazer experimentos.

Enquanto Handelhan estava ocupado em nossas masmorras cada vez mais profundas e Pleth estava reunindo seguidores sob a bandeira da Árvore de Um Olho só, Qorg e eu saímos para semear o caos geral. Qorg precisava espalhar o fogo da guerra para apaziguar o Deus a quem servia, enquanto eu precisava pensar em fazer algo construtivo com meu tempo. No final, acabei convencendo os generais que queriam paz de que a única maneira de obtê-la era atacando preventivamente todas as ameaças em potencial ao seu redor. De alguma forma, essa ironia satírica não me deixou particularmente entusiasmado.

Enquanto viajava com Qorg, descobri que ele não confiava muito em Handelhan. Se Handelhan conseguisse descobrir uma maneira de transferir a divindade, Qorg temia que Handelhan pudesse um dia tentar tirar nossos poderes. Achei essa ideia bastante divertida, mas disse a Qorg para não se preocupar, pois se Handelhan tentasse nos trair, no mínimo poderíamos avisar os Deuses Maiores para arruinar qualquer plano que ele tivesse. Isso não pareceu confortar Qorg, mas abrir caminho através de um exército inimigo pareceu acalmar um pouco seus nervos.

No final do século, Handelhan cumpriu sua promessa e nos mostrou a forma ressecada de Maleon. A aparência jovem de um semideus havia sido tirada dele e, por fim, ele nunca acordou do sono em que Handelhan o havia colocado, morrendo alguns anos depois sob os cuidados de sua esposa. No entanto, nenhum de nós se preocupou com nosso inimigo, pois Handelhan continuou sua demonstração lendo rapidamente um romance em um minuto. Qorg e eu ficamos bastante impressionados e decidimos imediatamente que a captura de outros semideuses seria o nosso objetivo para os próximos séculos.

Quando Pleth retornou de suas andanças, nós o convencemos a absorver a essência divina do semideus controlador de animais que havíamos capturado há tanto tempo. Com esses poderes somados aos seus próprios, Pleth era realmente uma força formidável, e o culto dedicado a ele floresceu sob sua proteção. Ao saber que nossa prioridade era capturar outros semideuses, Pleth concordou com Qorg que deveríamos tentar capturar um servo do Deus da Guerra.

Qorg já tinha um alvo em mente. Ele era um semideus rival chamado Brask, que Qorg havia encontrado muitas vezes no campo de batalha, e cada um dos encontros terminava com a morte temporária de um deles. Qorg o sugeriu porque seria fácil localizá-lo, já que Qorg sabia em que áreas ele normalmente gravitava, e também porque Qorg tinha uma boa chance de derrotá-lo sozinho e uma chance ótima de derrotá-lo com a ajuda de Pleth.

Encontramos Brask liderando um exército de tamanho considerável, mas de aparência bruta, e passei um ano seguindo seu bando. Teria sido um ano difícil, mas meu poder facilitou bastante minha vida entre os soldados, já que eu podia direcionar qualquer ira contra mim para qualquer um dos outros seguidores do acampamento. Minha presença, por si só, parecia minar grande parte da moral do exército, com todos sempre de mau-humor porque eu continuava a direcionar a raiva deles uns para os outros. No final do ano, o exército havia sido reduzido a um terço de seu tamanho original graças às baixas e aos desertores, e Qorg não podia esperar mais.

O exército que Qorg havia reunido em um ano era bastante impressionante, com quase o dobro do tamanho do de Brask. Brask, não sendo tolo, fugiu do exército de Qorg e escondeu sua força principal em um castelo. Depois que Qorg terminou de massacrar as forças externas, ele se viu diante de um castelo totalmente abastecido e guarnecido.

Nesse ponto, eu havia mudado de função, de seguidor do acampamento para atendente de castelo, e, embora passasse meus dias fazendo tarefas domésticas, não me preocupava em fazer nada muito inteligente. Brask, muito diferentemente de Qorg, era muito inteligente, a ponto de que, se eu agisse com muita ousadia dentro dos limites do castelo, ele poderia traçar qualquer caos que eu causasse até mim. Portanto, eu tinha que me contentar em simplesmente usar meu poder para semear a miséria em todos os lugares, principalmente convencendo as pessoas de que a melhor maneira de aliviar seus medos era comer e fingir que tudo estava bem.

Brask, cujo dom divino era o domínio completo de qualquer arma que empunhasse, passava grande parte de seu tempo instruindo seus soldados de elite. Observar Brask e imaginar Qorg com suas habilidades me fez pensar se seríamos capazes de conquistar o mundo inteiro após capturá-lo.

O restante do tempo de Brask era gasto na defesa contra Qorg, que era simplesmente um grande idiota. Estando por dentro do cerco, percebi que Qorg era o pior tipo de oponente que se poderia desejar. A cada poucos dias, ele pulava em cima de uma catapulta, lançava-se por cima das muralhas, massacrava o maior número possível de soldados antes de se cansar ou de o próprio Brask entrar na briga e, em seguida, Qorg voltava correndo e mergulhava no fosso, apenas para retornar ao acampamento e dar a seus ferimentos recentes a chance de se recuperar.

Na quinta vez que Qorg fez isso, percebi que ele estava apenas brincando, tentando prolongar ao máximo essa última batalha contra seu rival. Muitas vezes me perguntei por que Pleth simplesmente não invadiu o castelo com animais e árvores, mas não tanto quanto me perguntei o que Handelhan estava fazendo durante tudo isso.

Como seus estoques de alimentos haviam se esgotado muito mais rápido do que ele havia previsto, Brask se viu diante de uma decisão difícil no final do terceiro mês. Reunindo os últimos soldados que lhe restavam, Brask decidiu tentar romper a linha que cercava o castelo, mesmo que isso significasse deixar os outros habitantes do castelo, inclusive eu, à própria sorte. Embora os homens provavelmente fossem todos mortos e as mulheres estupradas e coisas piores, foi difícil para nós odiá-lo enquanto ele fazia um discurso bastante comovente explicando suas razões e como tinha sido difícil chegar à sua decisão.

Enquanto Brask e seus soldados partiam, eu ajudei os homens restantes a reunir as mulheres e a enfiar todos nos confins mais internos da fortaleza. Houve uma quantidade incrível de choro, tanto dos homens quanto das mulheres, e eu podia praticamente sentir como era forte o desejo deles de viver. Eu sabia que o melhor que eu poderia fazer por eles era chegar a Qorg o mais rápido possível e impedir que seu exército saqueasse o castelo, mas tudo dependia do fato de Qorg ter sobrevivido ao encontro com Brask.

Qorg havia permitido que seus homens espalhassem demais a linha, e Brask facilmente a rompeu. Ele e seus homens teriam provavelmente conseguido escapar se Pleth não tivesse ordenado que seus cavalos voltassem. Foi um tanto lamentável, os homens de Brask gritavam para suas próprias montarias, que se recusavam a ouvi-los, não importando a força com que chutassem seus flancos. Com os cavalos arrancados e ensanguentados quando voltaram para o centro do exército de Qorg, os soldados que estavam sobre eles pediram ao comandante que se rendesse. Brask, em um sinal de rendição completa, jogou no chão a lança e a espada, tudo o que o separava de um homem normal.

Qorg estava de bom humor e ofereceu a Brask o direito de duelar pela vida de seus homens. Brask concordou com um duelo ao nascer do sol, o que me deu tempo suficiente para entrar sorrateiramente no acampamento de Qorg. Fizemos um grande banquete naquela noite, comemorando nossa vitória e nosso reencontro. Pleth se recusou a comemorar, pois alegou que ainda não havíamos vencido, mas Qorg festejou e bebeu até de manhã.

O duelo não começou com nenhuma cerimônia real. Um círculo de homens cercou Brask e Qorg, e eles simplesmente correram um contra o outro. Qorg não mostrou nenhum sinal de cansaço por ter passado a noite festejando e atacou Brask com um grande porrete feito de ferro. Apesar da ferocidade de Qorg, Brask conseguiu acompanhar a incrível velocidade da clava, esquivando-se de cada golpe e desferindo vários outros com sua espada.

Quando Qorg finalmente acertou um golpe, um golpe horrível que esmagou a braçadeira esquerda de Brask, despedaçou seu ombro, aleijou seu braço e o empurrou alguns centímetros contra o chão duro, já era tarde demais. Brask suportou o ataque e, em seguida, esfaqueou Qorg várias vezes, derrubando-o.

Foi um resultado indesejado, mas não inesperado. Enquanto Qorg morria, gritando obscenidades, vimos Brask e seus homens montarem em seus cavalos e partirem, sem que nenhum dos homens de Qorg se preocupasse em persegui-lo.

Pleth esperou até que Brask estivesse cavalgando perto de um barranco antes de fazer com que o cavalo do homem o derrubasse, um fim um tanto cruel para um homem que havia suportado tanto. O restante dos cavaleiros de Brask tentou parar seus cavalos, mas eles continuaram passando pelo líder. Embora alguns homens tenham pulado de seus cavalos, eles não conseguiram alcançar Brask antes que os leões da montanha o fizessem, e as feras o arrastaram de volta para Pleth.

O homem aleijado estava quase morto, e nós nos esforçamos muito mais para salvar sua vida do que para salvar a de Qorg. Felizmente, Handelhan apareceu e conseguiu colocar Brask em um coma estável. Ele também explicou o quanto havia aprendido graças à sua habilidade de leitura rápida e como havia se tornado capaz de combinar suas duas habilidades, lendo a mente das pessoas até seus aspectos mais profundos em apenas alguns segundos. Após passar um bom tempo analisando as mentes das pessoas mais brilhantes de sua academia, ele se tornou a pessoa mais inteligente do mundo.

Enquanto Handelhan levava o corpo maltratado de Brask de volta à nossa cidadela, Pleth e eu tentávamos restaurar algum senso de ordem ao exército de Qorg. Sem sua liderança, o exército foi reduzido a nada mais que um enorme bando de bandidos e, para minha consternação, eles não apenas saquearam o castelo, mas começaram a aterrorizar o campo.

Pleth acabou conseguindo encurralá-los com seus poderes e até conseguiu fazer com que a maioria deles se convertesse à adoração da Árvore de Um Olho só, mas isso pouco fez para aliviar os sentimentos de amargura dentro de mim. Eu sabia que havia passado tempo demais entre os mortais, e era difícil esquecer os rostos dos homens e mulheres chorando enquanto se amontoavam no fundo da fortaleza, com seus destinos totalmente fora de seu controle.

Quando Qorg, ressuscitado e furioso, retornou, ele ficou apenas alguns dias na cidadela antes de sair para lutar em alguma guerra. Passaram-se vários meses até ele retornar, e Handelhan foi forçado a lhe dar algumas notícias infelizes.

Brask havia morrido alguns dias antes do retorno de Qorg. Embora Handelhan tivesse feito tudo o que podia para salvar sua vida, no final ele foi forçado a extrair a divindade de Brask para evitar que ele ressuscitasse. Não querendo desperdiçar o que havíamos trabalhado tão arduamente para obter, o próprio Handelhan tomou a divindade de Brask.

Essa história era bastante plausível, mas o desequilíbrio de poder havia se tornado bastante dramático. Qorg estava contando com a habilidade de Brask para reforçar seu próprio poder, mas agora ele era forçado a enfrentar Handelhan, que possivelmente teria a vantagem em uma luta direta. Qorg não expressou sua raiva, mas duvido que Handelhan precisasse ler sua mente para saber o que ele estava pensando.

Seu único consolo veio na forma de Pleth, que podíamos contar que era mais forte do que Handelhan e que o manteria sob controle. Mas, com Pleth bastante ocupado gerenciando seu culto e vagando pela região, Qorg se sentiu vulnerável demais dentro de nossa fortaleza. Sem perder tempo, ele começou a planejar nossa próxima captura, uma mulher sobre a qual ele tinha ouvido falar em rumores conhecidos como a Rainha dos Arqueiros, que era definitivamente um semideus se as histórias que a cercavam fossem verdadeiras.

Segui atrás de Qorg e viajamos para o sul. Aqui, os deuses a quem servíamos tinham nomes diferentes dos que estávamos acostumados, mas o Deus da Guerra ainda era o Deus da Guerra. Fomos atrás de rumores sobre a Rainha dos Arqueiros, e aprendi o útil truque de transformar o desejo de uma pessoa de não ser morta por Qorg em um desejo de contar a ele tudo o que sabia. Demorou muitos meses até a encontrarmos, morando em meio a um grande grupo de sacerdotes-guerreiros.

Ceret era de fato uma semideusa e tinha a terrível habilidade de nunca errar com seu arco. Após observá-la devastar um grupo de bandidos em uma montanha distante, Qorg decidiu que seria melhor tentar fazer amizade com a mulher. Fiquei um pouco surpreso, já que Qorg era a última pessoa que eu imaginava que tentaria evitar uma batalha, mas quando nos juntamos ao grupo de sacerdotes-guerreiros, percebi que essas pessoas eram exatamente do tipo que Qorg mais gostava.

Após me encontrar com Ceret, descobri que ela era bastante amável, e Qorg estava praticamente apaixonado por ela. Ela era ousada e bela (como a maioria dos seres divinos) e podia disparar quatro flechas de seu arco e atingir o coração de um homem vindo de cada uma das quatro direções. Totalmente devotada ao Deus da Guerra, eu sempre me perguntava o que ela pensaria se soubesse que Qorg estava tentando destituí-lo.

Passamos vários anos simplesmente acompanhando o bando dela, com Qorg suprimindo sua força a níveis mortais (mas ainda assim léguas mais forte do que eu). Foi uma época estranha, porque acho que não tínhamos nenhum tipo de plano e Qorg estava simplesmente fazendo o que queria. Uma parte de mim achava que ele ainda estava curando a ferida da derrota para seu rival no último encontro, e eu estava mais do que disposto a dar a ele algum tempo para se acalmar.

Encontramos alguns problemas na forma de um semideus que servia ao Deus da Natureza, que dominava o fogo e as chamas. Seus sacerdotes e os seguidores de Ceret entraram em conflito, resultando em uma batalha desastrosa. As flechas de Ceret se transformavam em cinzas quando se aproximavam dele, e Qorg permanecia tentando obstinadamente esconder sua divindade. No final, eu tive que cavalgar em batalha, com meu orgulho excedendo em muito minha capacidade, e fui queimado até virar cinzas.

Ao despertar nos Salões dos Imortais, percebi que fazia muitos séculos que eu não voltava para lá. Me senti compelido a vagar pelos salões imaculados e, somente após chegar aos Jardins do Desejo, percebi o porquê da vontade de vagar ter me dominado.

O Deus do Desejo não queria se aproximar de mim, ele queria que eu me aproximasse dele. Embora ele fosse uma divindade relativamente fraca quando colocada entre os deuses maiores, a diferença entre nós era maior do que a diferença entre um rei e um rato que habitava os esgotos. Meu Deus queria saber como eu havia promovido o desejo em toda a terra, e eu só podia responder que havia impedido as pessoas de alcançar a verdadeira satisfação.

Recebi alguns conselhos, principalmente o de que negar satisfação às pessoas por muito tempo simplesmente mataria seu desejo, mas também o de que proporcionar satisfação impediria que seus desejos se tornassem muito fortes. Ele advertiu que desejos muito fortes levavam as pessoas à ruína muito mais do que qualquer outra coisa. Agradeci ao meu Deus e depois fiquei imaginando o quanto o Deus do Desejo sabia sobre meus próprios desejos.

Quando retornei ao mundo mortal, decidi que era melhor deixar Qorg sozinho e passar algum tempo com Handelhan. Na maioria das vezes, foi porque eu realmente não poderia voltar dos mortos sem estragar toda a tentativa de Qorg de fingir ser um mortal, mas também porque Handelhan estava passando muito tempo sozinho.

Ele me pediu para ajudar a distorcer os desejos de várias pessoas em sua biblioteca e academia, e também me permitiu observar alguns de seus experimentos. Alguns desses experimentos foram realizados nele mesmo, pois ele estava tentando encontrar uma maneira de remover apenas uma parte da divindade de uma pessoa em vez de toda ela, em parte para que ele pudesse transferir as habilidades com armas de Brask para Qorg.

Um objetivo mais urgente para ele eram suas tentativas de aumentar a longevidade dos mortais. Enquanto trabalhava com os pesquisadores, descobri que Handelhan havia conseguido arranjar uma esposa mortal uma década atrás. Quando perguntei a Handelhan sobre isso, ele disse que eu deveria entender como os desejos podem ser poderosos, e que ele havia se apaixonado por uma pesquisadora depois de ler a mente dela e ficar perdidamente apaixonado por ela.

Acredito que o fato de ela ser muito bonita também pode ter contribuído para isso.

Embora ela ainda fosse bastante jovem, seriam apenas algumas décadas até que sua vida acabasse, e Handelhan não permitiria que algo assim acontecesse.

Sem nenhum semideus capturado, Handelhan estava disposto a dar uma parte de sua divindade para a esposa, mas os obstáculos que ele estava enfrentando eram muito grandes. Ele precisava não apenas dividir sua divindade com sucesso, mas também transferi-la com sucesso para um mortal, algo que nem mesmo sabíamos se era possível. Em teoria, havia uma chance de funcionar, mas havia tantas complicações que poderiam ocorrer que eu estava muito relutante em tentar antes de termos certeza do que estávamos fazendo.

No entanto, Handelhan estava trabalhando com um prazo bastante restrito, pois sua esposa tinha suas décadas contadas. Depois de ajudá-lo em seus experimentos, ele me pediu para ajudar Pleth ou Qorg a capturar um semideus o mais rápido possível, para tentar transferir o poder deles para sua esposa. Quando saí para me juntar a Pleth, ele mencionou casualmente que preferia que o semideus fosse um servo do Desejo.

Pleth e o culto da Árvore de Um Olho estavam construindo um templo bastante grandioso quando o encontrei. Após contar a ele sobre a esposa de Handelhan, a quem Pleth chamou de “a loucura de Handelhan”, fiz o possível para persuadi-lo a ajudar Handelhan em sua empreitada. Embora Pleth argumentasse que a morte de um mortal era tão natural quanto sua vida e que conceder uma divindade iria contra a natureza, eu o intimidei dizendo que todos nós devíamos a Handelhan por seus muitos anos de trabalho árduo.

Depois de nos vestirmos com as roupas de peregrinos, deixamos a construção do templo nas mãos de um arquiteto jovem, mas brilhante, que prometeu terminá-lo em trinta anos. Com bandos de pássaros e feras sedentas de sangue cercando o templo como seus guardiões, partimos para nos encontrar com Qorg.

Ouvimos rumores ao longo do caminho, atentos a qualquer coisa que pudesse nos levar a um semideus do desejo. Depois de ouvir muitas histórias obscenas, concluí que, a menos que um bordel a cada dois realmente mantivesse um semideus, precisávamos mudar nosso método de interrogatório.

Qorg estava em um estado muito melhor do que quando o deixei pela última vez. Embora ele não tenha conseguido matar o semideus controlador do fogo, minha cavalgada suicida proporcionou aos seguidores de Ceret um momento de alívio das chamas, permitindo que eles escapassem. Isso também proporcionou a Qorg e Ceret algo para lamentarem juntos, embora Qorg tenha se desculpado por derramar lágrimas falsas em meu nome. De qualquer forma, ele se tornou bastante próximo de Ceret, embora ela provavelmente estivesse começando a suspeitar de sua divindade.

Depois de me reapresentar à Ceret como o irmão mais novo do meu antigo eu, ela teve tato suficiente para aceitar sem perguntas. Pleth imediatamente confessou seu amor por ela, o que levou Qorg a quebrar o jarro de barro do qual ele estava bebendo, mas Ceret reconheceu prontamente a piada pelo que ela era.

Qorg ouviu atentamente quando lhe contei sobre a situação de Handelhan, que fez com que ele também começasse a chamá-la de “a loucura de Handelhan”. Ele disse que isso atrapalharia todos os nossos planos e poderia até acabar resultando em alguma catástrofe terrível. Mesmo assim, ele concordou em ajudar e se deixou a companhia de Ceret.

Para nossa surpresa, não demorou muito para que o próprio Handelhan se juntasse a nós, e nós quatro não pudemos deixar de comemorar nossa reunião fazendo bastante barulho em uma cidade próxima. No dia seguinte, enquanto nos recuperávamos, Handelhan nos explicou seu plano, do qual desde o início eu já desgostava, mas não comentei até ele que ele terminasse.

Para capturar um semideus do Desejo, ele queria que eu estimulasse o desejo pelo mundo, forçando-o na mente e na vida de todos. Ele queria que a adoração do Desejo crescesse até se tornar selvagem e aberta, que faria com que os semideuses do desejo surgissem com orgulho. Ele também queria que isso fosse feito rapidamente.

Eu estava prestes a perguntar como exatamente ele propunha que eu fizesse isso, mas ele já tinha uma resposta preparada. Minha tarefa, explicou ele, seria convencer as pessoas de que elas poderiam satisfazer seu desejo por amor com sexo.

Eu não tinha certeza se queria discutir com Handelhan. Ele tinha certeza de que seu plano daria certo, mas também explicou que, naturalmente, precisaria haver alguma oposição. Ele queria que eu poupasse os seguidores da Árvore de Um Olho, e eles serviriam como um ponto de encontro para os dissidentes. Com Pleth guiando seus seguidores e Qorg me protegendo enquanto eu cavalgava pelos vilarejos e cidades, Handelhan estabeleceria uma rede para coletar informações sobre o progresso do Desejo e de qualquer semideus em potencial.

Era um plano estranho, mas tanto Pleth quanto Qorg estavam curiosos para ver o que aconteceria. Com uma década como nosso limite de tempo, eles sentiram que valia a pena passar esse curto período se entregando ao plano de Handelhan e, se ele falhasse, Handelhan só poderia culpar a si.

Então, comecei minha cavalgada pela primeira cidade, vestido com um manto vermelho. Pleth me garantiu que não havia nenhum de seus seguidores naquela cidade, então usei meu poder em qualquer um que estivesse por perto. Não houve efeitos imediatos e, quando saí naquela noite, deixei a cidade sem ver nenhuma consequência de meus poderes.

Na cidade seguinte, vestido com um manto verde, comecei meu trabalho novamente. Era um trabalho estranho, porque eu não tinha certeza do que estava fazendo. Era bastante simples, pois era fácil convencer as pessoas de que o sexo era a prova do amor, e que obter sexo era o mesmo que obter amor, mas, para mim, o que isso faria para promover o plano de Handelhan era uma incógnita.

Na sexta cidade, enquanto usava um manto azul, comecei a ouvir rumores. Provavelmente também porque eu estava de ouvido aberto para esse tipo de rumores, mas as donas de casa que tagarelavam pelas esquinas pareciam ter muito o que fofocar.

Percorri o país, com Qorg e o caos em meu rastro e, no final do primeiro ano, Handelhan disse que tinha informações animadoras a oferecer. Na parte do país que eu havia percorrido primeiro, os nascimentos de crianças haviam disparado e os bordéis haviam obtido lucros enormes, um sinal claro de que as pessoas estavam fazendo mais sexo. Quando perguntei o que tudo isso significava, ele simplesmente disse para continuar o que eu estava fazendo, pois os resultados só floresceriam de verdade por volta do quinto ano.

E assim, eu continuei, nunca passando mais do que alguns dias em cada cidade que visitava. Usei meu poder em mendigos, soldados, padeiros, cavaleiros, lordes, comerciantes, leiteiras, poetas e acadêmicos, em qualquer pessoa que tivesse a infelicidade de se aproximar de mim. No final do quinto ano, eu não precisava mais que Handelhan me dissesse o que estava acontecendo.

Eu havia subestimado o desejo por amor das pessoas. Para algumas pessoas, mais do que comida, mais do que água, mais do que ar, essas pessoas desejavam o amor. Procurar sexo quando elas queriam desesperadamente amor estava se revelando um grande terror. Os sortudos conseguiam encontrar um pouco de amor em meio ao sexo, mas dentre eles estavam os mais infelizes, que encontravam o amor com seus parceiros, mas seus parceiros não o encontravam com eles. A maioria simplesmente se deleitava com seu desejo carnal, sem nunca conseguir preencher a lacuna que era seu verdadeiro desejo.

As pessoas que nunca quiseram o amor em primeiro lugar se tornaram reis de um olho só dentre cegos, completamente satisfeitos e levando todos os outros a seguirem seus passos. Em pouco tempo, o desejo infinito por sexo (que, na verdade, era apenas a fome insaciável por amor) consumiu a cultura, e os adoradores do desejo encontraram muitos novos convertidos.

No sétimo ano, Qorg e eu fomos atacados por bandidos. Isso não era algo que não tivesse ocorrido antes, mas geralmente uma pequena demonstração de força de Qorg era suficiente para fazer os bandidos fugirem. Esses bandidos, no entanto, atacaram com fervor imprudente, ignorando Qorg e indo direto para mim.

Foi só então que percebi o motivo que levou Qorg a suprimir sua força enquanto estava com os seguidores de Ceret. Durante aqueles anos, ele havia aprendido a lutar sem depender da força bruta, e sua habilidade brilhou naquele dia. Os bandidos estavam sendo despedaçados com pouca participação minha, mas eles continuaram a atacar de forma louca, tentando passar por Qorg. Quando uma seta de besta me atingiu na coxa, percebi que era hora de fugir da batalha, mas já era tarde demais. Enquanto eu era bombardeado por flechas, parei por um momento para reconhecer a estranheza de tudo aquilo.

Nos sagrados Salões dos Imortais, de repente tive vontade de correr para os Jardins do Desejo e percebi que era uma convocação nada sutil do Deus do Desejo. Não me dei ao trabalho de ver se conseguiria resistir a esse impulso, mas tive orgulho suficiente para somente caminhar até lá em vez de ir saltitando.

No entanto, à medida que me aproximava dos jardins, meu medo me levou a saltitar e eu estava praticamente afoito quando cheguei em frente ao meu Deus. Para minha surpresa, depois de pedir desculpas pela convocação um tanto rude, ele quis me elogiar por meus esforços. Quando percebeu o que exatamente estava acontecendo entre as pessoas, ele soube que eu devia ser a pessoa que estava induzindo as pessoas a buscar sexo quando elas queriam amor. Em pouco tempo, seus adoradores quase dobraram, e ele queria recompensar minha esperteza com qualquer dádiva que eu desejasse.

Não sou particularmente esperto, mas consigo perceber um teste quando me apresentam um. Quando um Deus do Desejo pergunta o que você quer, é como se o Deus da Guerra perguntasse o quanto você gosta de guerra. Ele estava tentando avaliar a essência do meu desejo, o que, infelizmente para mim, era bastante incriminador. Se eu lhe dissesse meu verdadeiro desejo, tenho certeza de que ele não entregaria simplesmente todo o seu poder. Se eu pedisse muito pouco, isso seria quase tão ruim quanto que causaria com que ele suspeitasse definitivamente de algum desejo mais profundo.

Ao considerar minhas opções, lembrei-me de todo o propósito original que me levou a sair por aí e bagunçar a vida das pessoas. Pensando bem, decidi que a melhor maneira de fazer isso seria dizer que eu gostaria de ter um subordinado, um semideus subordinado. Eu tinha em mente uma mortal que eu achava que seria uma excelente candidata para se tornar uma serva do Deus do Desejo e pedi a ele que lhe concedesse parte de sua divindade e que me permitisse guiá-la em sua adoração.

Meu Deus ficou bastante satisfeito com esse pedido, pois parecia pensar que meu desejo refletia uma vontade de expandir seu poder e decidiu que o concederia se achasse que minha candidata era adequada. Felizmente, ele só precisou de uma rápida olhada para considerá-la adequada e concedeu-lhe a capacidade de fazer as pessoas sonharem com o que mais desejavam. Como toque final, ele lhe deu o novo nome de Cymdra, para refletir que ela era minha aprendiz.

Até agora, Cymdra não sabia que Handelhan era um semideus ou que os deuses realmente existiam, o que tornou tudo isso um grande choque. Eu não sabia o quanto poderia contar a ela, o quanto Handelhan havia escondido dela e se a minha ideia de improviso havia sido realmente boa ou não. Então, preparei-lhe uma xícara de chá, sentei-a e conversamos sobre como o tempo estava agradável recentemente.

Quando Handelhan soube o que eu havia feito, ficou furioso. Fazer de sua esposa minha subordinada não fazia parte de seus planos, e fazer com que ela se tornasse uma serva de nossos maiores inimigos definitivamente não fazia. Enquanto Cymdra e eu tentávamos acalmá-lo, cometi o erro quase fatal de chamá-la por seu novo nome. Se Pleth e Qorg não tivessem decidido fazer uma aparição bastante oportuna, eu poderia ter me encontrado contando as pedras na cela mais profunda de nossa cidadela.

Depois que nós quatro conseguimos acalmar Handelhan, pedi a Cymdra que saísse para que pudéssemos discutir a próxima etapa de nossos planos. Pleth e Qorg concordaram que a situação terminou bem, pois o objetivo de Handelhan de tornar sua esposa imortal havia sido alcançado e poderíamos parar com esse plano dele que provavelmente teria repercussões no longo prazo.

Mais tarde, Qorg me disse que eu tinha tomado uma decisão brilhante, pois agora eu tinha sob meu poder o que mais interessava a Handelhan. Considerando que isso significava que eu havia conquistado a ira de um mestre de armas imortal hiperinteligente que tinha a capacidade de roubar a essência divina dos deuses, não considerei essa decisão tão brilhante assim.

Embora o objetivo de Handelhan tenha sido alcançado prematuramente, a execução de seu plano não parou. No oitavo ano, sua rede de inteligência já havia visto a ascensão de um poderoso semideus do desejo, que reunia adoradores sob o nome de Dama da Meia Noite. Não querendo desperdiçar o resultado que seu plano havia produzido, Handelhan decidiu que seria melhor se capturássemos essa Dama e absorvêssemos seu poder.

Sem motivo para discutir, nós quatro partimos, deixando Cymdra para trás para cuidar da cidadela. Eu havia discutido com Handelhan sobre contar a ela tudo, inclusive nosso objetivo final e os métodos que estávamos adotando para alcançá-lo, mas como ele era seu marido e eu apenas seu professor, a decisão dele que foi acatada.

Ao chegar à cidade onde, segundo os rumores, morava a Dama da Meia-Noite, percebi que, embora eu pudesse ter provocado uma faísca, foram definitivamente outros semideuses que alimentaram as chamas. Coberta de preto, a cidade era um carnaval de deboche e desejo, um templo gigante para os aspectos mais sombrios do meu deus. Tudo o que era sagrado era tudo o que não era, visões de rituais carnais chegavam até nós por trás de véus e cortinas negras que balançavam com a brisa. Pleth, que havia passado anos aconselhando seus seguidores a respeitar a divisão entre amor e sexo, chegava a sentir certa repulsa por essas imagens.

A julgar por sua ferocidade, definitivamente não era um poder comum que impulsionava esses adoradores, e comecei a suspeitar dos enormes braseiros que sufocavam a cidade com o cheiro de incenso. Como semideuses, éramos imunes a qualquer poder de encantamento que eles pudessem ter, mas o cheiro forte tinha quase um poder próprio.

Éramos frequentemente parados em nosso caminho até a Dama, mas nem Handelhan, nem Qorg tinham qualquer motivo para atrasar o encontro. Cortando qualquer um que estivesse em nosso caminho, Handelhan só diminuía a velocidade o tempo suficiente para ler a mente de uma pessoa e descobrir onde a Dama estava antes de completar seu golpe. Talvez fosse a fumaça que estava embaçando minha mente, mas não me preocupei em recomendar uma abordagem mais sutil.

Nós a encontramos tentando fugir em um cavalo, mas Pleth deu um fim rápido a esse plano. Depois que ela foi jogada no chão, começou a nos questionar, tentando descobrir por que estávamos atrás dela. Quando não obteve resposta, ela tirou sua capa preta e tentou fazer um acordo conosco. Em retrospecto, algum de nós deveria ter dito algo, qualquer coisa, só para que pudéssemos nos aproximar um pouco mais e conseguir nocauteá-la.

Mas permanecemos em silêncio e ela decidiu fazer algo que havíamos esquecido completamente que ela era capaz de fazer.

Ela pulou para trás sobre o enorme braseiro atrás dela, e seu cabelo e corpo oleados foram imediatamente engolidos pelas chamas. Todos nós corremos para frente, tentando apagar o fogo, mas mesmo quando Qorg enfiou as mãos no chão e começou a jogar terra rapidamente sobre ela, já era tarde demais.

Ela havia retornado aos Salões dos Imortais, onde o Deus do Desejo estava esperando por ela.

Entramos em pânico.

Ninguém sabia o que fazer ou o que iria acontecer. Ela tinha visto claramente nós quatro e provavelmente poderia adivinhar que éramos semideuses, pois não tínhamos sido afetados por seu incenso. Ela não tinha como saber a quais deuses servíamos, embora provavelmente pensasse que servíamos ao Deus da Guerra, considerando que dois de nós estavam cobertos de sangue.

Se eu fosse ela, correria para o Deus do Desejo, diria a ele que algo estava acontecendo e tentaria iniciar algum tipo de investigação. Eu não tinha ideia de quanto tempo levava para acordar após ser morto, especialmente porque o tempo não era uma ideia rigorosa dentro dos Salões dos Imortais, mas definitivamente era nossa prioridade sair da cidade o mais rápido possível.

Handelhan pensava diferente. Ele desembainhou sua espada e, antes que eu tivesse a chance de protestar, cortou minha cabeça.

Os Salões dos Imortais são um lugar lindo, mas são vistas que você pode enjoar de ver. Depois de acordar, não pude deixar de sentir raiva. Obviamente, ele me enviou como uma espécie de controle de danos, mas já o que eu deveria dizer ao meu Deus era um mistério total e absoluto. Eu realmente duvido que ele fosse convencido por qualquer história do tipo “não é o que parece”. Naquele momento, meu cérebro só tinha uma ideia em mente, que era descobrir o que a Dama estava dizendo ao meu Deus.

Quando cheguei aos Jardins dos Desejos, tentei me misturar na vegetação, rastejando em direção ao local onde o Deus dos Desejos realizava suas audiências. Ele não estava reclinado, como de costume, em seu enorme divã, mas sentado, atento, enquanto a Dama da Meia-Noite concluía sua história.

Ele não estava satisfeito. Pelo que pude perceber, ele havia reconhecido a descrição de meu rosto (por que eu não havia usado uma máscara?), embora não conhecesse a de meus co-conspiradores. Suas identidades eram um problema pequeno, já que os outros Deuses Maiores reconheceriam seus servos, mas o Deus do Desejo não tinha certeza se valia a pena incomodá-los com isso.

Havia várias razões possíveis pelas quais a Dama da Meia-Noite poderia ter sido atacada, ele raciocinou em voz alta e, em meu grande favor, começou a me fornecer várias histórias de cobertura perfeitamente plausíveis. Nem mesmo era certo que eu tivesse a intenção de matá-la, especialmente porque, como semideus, eu sabia que ela não morreria de verdade.

Mas a Senhora era uma serva do Desejo e reconheceu nossa sede de sangue pelo que ela era. Ela praticamente gritou ao nos condenar, dizendo que nossos olhos não haviam mentido e que buscávamos sua verdadeira morte. O Deus do Desejo a encarou incrédulo, pois a ideia de meros semideuses possuírem o poder de matar seres divinos era quase risível, mas ele disse a ela que não se preocupasse. Se eu possuísse tal poder, ele o determinaria na próxima vez que nos encontrássemos, usando um de seus dons divinos para perscrutar meus desejos e ver todos os meus planos e objetivos.

Minhas esperanças de voltar ao status quo anterior morreram naquele momento, pois eu duvidava que qualquer coisa que eu pudesse fazer pudesse contornar a capacidade do meu Deus. Na próxima vez em que nos encontrássemos, nossas intenções seriam conhecidas e, se eu adiasse a reunião, o resultado seria o mesmo. Ao me despedir de nossos dias de subterfúgio, vi uma breve chance.

Se eu me arrependesse de todo o coração naquele momento, acabasse com meu desejo de poder e o substituísse pelo desejo de servir ao meu Deus, eu poderia me poupar ao custo de condenar meus companheiros de conspiração. No entanto, a noção de que eu poderia simplesmente extinguir um desejo que eu havia nutrido por séculos apenas para minha própria conveniência passou assim que surgiu, e eu sabia que meu próximo passo seria simplesmente escapar dos Salões dos Imortais.

Mas, enquanto aguardava a oportunidade de partir, senti uma compulsão diferente de todas as que já havia sentido. Era uma ordem que eu já conhecia, uma ordem que me impelia a ir aos Jardins do Desejo, mas em uma magnitude que não deixava espaço em meu coração para nenhum outro desejo. Meu deus me queria em seus jardins, e a única coisa que me salvou foi o fato de eu já estar lá.

O Deus do Desejo continuou a me pressionar, enquanto dizia casualmente à Dama da Meia-Noite que ele havia me convocado e que eu até cometeria suicídio para chegar até ele. Seus servos correriam até ele assim que eu chegasse aos Salões dos Imortais, anunciando minha aproximação. Eles só teriam que esperar até que eu chegasse, e então tudo seria revelado.

Eles esperaram, e eu percebi algo um pouco engraçado. Meu deus havia substituído todo desejo dentro de mim por um propósito singular, que já estava cumprido. Eu estava desfrutando do contentamento definitivo durante um momento em que deveria estar temendo por minha própria existência, satisfeito além de todos os meus desejos. Se fosse para eu chegar perto do esclarescimento, com certeza seria nesse momento, satisfeito além do que eu imaginava possível enquanto estava no Jardim do Desejo.

Enquanto eu me sentava meditativamente entre as folhas, o Deus do Desejo demonstrou não ter amor à paciência. Ele ordenou e exigiu que eu chegasse aos Jardins do Desejo com ainda mais fervor, mas em um reino onde o significado do tempo fluía e refluía, minha ausência contínua deixou bem claro que eu não viria.

Eu sempre questionei a natureza da divindade do meu Deus. Eu sabia que ele era incrivelmente poderoso, mas não sabia o quanto de natureza “humana” havia nele, já que eu nunca o tinha visto demonstrar nenhuma emoção além de prazer, desdém e raiva, as emoções que se espera de um deus, mas naquele dia vi uma nova emoção.

Ele estava com medo.

Ele havia investido todo o seu poder para me levar até ele, e eu havia conseguido resistir. Embora esse fato fosse completamente falso, aos olhos dele eu era um ser que tinha poderes que ele não compreendia, e a ideia de que eu poderia resistir aos desejos do Deus dos Desejos o perturbava muito.

Sem dizer uma palavra à atônita Dama, que não conseguia compreender a expressão no rosto de seu Senhor, o Deus dos Desejos deixou seus jardins para se reunir com os outros Deuses Maiores.

Reconhecendo que a chance era tão boa quanto qualquer outra, deixei os Jardins e viajei pelos Salões, permitindo que seus corredores e passagens me levassem para onde eu queria ir. Quando apareci na Cidadela esculpida no topo de nossa montanha, foi apenas um instante antes de ser cercado por meus três co-conspiradores.

Cada um deles me bombardeou com perguntas, mas a sensação de satisfação completa ainda não havia me abandonado. Ignorei suas perguntas individuais e simplesmente comecei a contar o que havia acontecido comigo depois que morri. Quando terminei, percebi algo que deveria ter me irritado, mas estava satisfeito demais para me importar no momento.

Perguntei por que Handelhan havia me matado e o que ele achava que teria conseguido com isso. Ele demorou a responder e me disse que estar nos Salões dos Imortais geralmente oferecia oportunidades a um semideus que ele não teria em outros lugares. O outro motivo, disse ele com certa hesitação, era que se eu fosse enviado sozinho para lá, poderia ser o único a ser punido. Ouvi esses dois motivos e simplesmente sorri, satisfeito demais para ficar com raiva. Enquanto eles se reuniam para discutir o que precisava ser feito, saí para conversar com Cymdra.

Quando Handelhan nos encontrou uma hora depois e percebeu que eu havia lhe contado tudo, ele teria me mandado de volta para os Salões dos Imortais se Qorg não tivesse conseguido agarrá-lo por trás. Eu ainda estava satisfeito demais para encarar seu olhar de ódio com seriedade, e nem mesmo fui capaz de ver o olhar de horror de Cymdra enquanto ela tentava compreender o que seu marido havia feito nos últimos séculos. Foi só quando Qorg soltou Handelhan e me deu um soco na cabeça que minha falsa sensação de esclarecimento passou.

Tínhamos muito pouco tempo, eles explicaram. Eu tinha tido sorte uma vez, mas da próxima vez que o Deus do Desejo me quisesse nos Salões, eu não teria chance de resistir. Do jeito que eu estava agora, eu era apenas um enorme fardo, esperando para ser convocado para abrir o meu coração diante do meu Deus, em mais de um sentido.

Pleth, Qorg e Handelhan, por não serem servos do Desejo, não corriam um perigo tão imediato, embora agora Cymdra, graças a mim, estivesse quase na mesma situação que eu.

Handelhan começou a explicar seu plano. Pleth havia se saído muito bem nos últimos anos e provavelmente era um dos semideuses mais fortes da Natureza. Embora ainda fosse muito cedo para desafiar o Deus da Natureza diretamente, ele seria capaz de se manter por conta própria e continuar a reunir seguidores, mesmo que sua seita fosse considerada herética por outros adoradores da Natureza. Com exércitos de árvores e animais sob seu comando, ele seria capaz de resistir, talvez até prosperar.

Qorg e Handelhan não tinham sua própria seita, mas a academia estava pronta para reunir alguns estudiosos para adorar um novo Deus do Conhecimento. Qorg protegeria os seguidores de Handelhan, que dariam continuidade à pesquisa de Handelhan.

Eu, sendo uma calamidade esperando para acontecer, deveria ser colocado para dormir. Enquanto estivesse sonhando, eu seria incapaz de responder à convocação do meu Deus e, quando Handelhan conseguisse produzir algumas contramedidas contra os impulsos do meu Deus, eu seria despertado. Cymdra, amaldiçoada com o conhecimento e a divindade que eu havia lhe dado, também teria de ser colocada para dormir.

Eles me selariam na câmara mais profunda de nossa cidadela, tão abaixo que as pedras das paredes estavam praticamente quentes ao toque. Deram-me um frasco que Handelhan me disse que me faria dormir até que eu fosse acordado por uma poção semelhante e me disseram que, mesmo que nenhuma contramedida tivesse sido encontrada ainda, eu seria acordado em um século e informado sobre o progresso deles.

Já Cymdra viajaria com Handelhan, dentro de uma arca de ferro. Pedi desculpas a ela, dizendo que nunca pretendi que ela passasse por algo assim, mas ela calmamente me agradeceu por contar a verdade. Ao passo que eu me deitava na placa de pedra desconfortavelmente quente, ela me prometeu sonhos agradáveis.

Quando acordei em seguida, estava sozinho e no escuro. Ainda selado dentro da câmara, lutei contra a porta de pedra, esperando que uma década de pressão contra ela pudesse me libertar. Sem necessidade de comida, água ou mesmo ar, continuei a pressionar a porta, esperando que o tempo me favorecesse.

Eu sabia que estava constantemente em perigo, pois nunca sabia quando seria obrigado a me matar para chegar aos Jardins do Desejo, mas o tempo que passei na escuridão foi uma singularidade de monotonia. Eu tinha muito tempo para pensar, mas como cada pensamento não passava de dúvidas e medos, preferi me concentrar na porta.

Várias eternidades depois, a porta foi empurrada para dentro, jogando-me para trás. Quando a luz encheu minha câmara, vi Qorg diante de mim, com uma mistura selvagem de emoções em seu rosto. Quando ele perguntou o que eu estava fazendo, respondi honestamente, e a sua mistura de emoções se transformou em uma risada simples e pura.

Quando ele terminou, sua expressão ficou séria, e suas notícias não eram muito melhores. Já era o terceiro século desde que eu havia sido colocado para dormir, e havia uma razão para eu não ter sido acordado antes.

No primeiro século, as coisas haviam ocorrido de acordo com nosso plano. Handelhan produziu um culto de estudiosos, enquanto Pleth transformou seus adoradores em um pequeno império. A Árvore de Um Olho evoluiu de um simples culto para uma religião completa, em parte devido à forte posição de Pleth em relação à moralidade. Em comparação com outros cultos à natureza, sua religião não adotava um senso de neutralidade ou uma mentalidade que priorizava a natureza, mas se esforçava para incentivar a harmonia e se concentrava principalmente nos aspectos positivos da natureza.

As pessoas começaram a se aglomerar em seu grande templo, que o jovem arquiteto finalmente concluiu em seu 100º aniversário. Nas profundezas de uma floresta primitiva, era praticamente uma fortaleza natural, com milhares de seguidores oferecendo à Árvore de Um Olho sua adoração e centenas de peregrinos chegando todos os dias.

No entanto, perto do momento em que eu seria despertado, os Deuses Maiores fizeram sua jogada. Foi uma manobra simples, algo quase elegante. Suspeito que o Deus do Conhecimento tenha passado um bom tempo preparando-a, reunindo lentamente todas as informações que podia antes de executá-la.

Quando Qorg estava ausente, uma equipe de semideuses capturou a arca de Cymdra.

Handelhan foi dominado e, com sua esposa em poder do Deus do Desejo, foi-lhe oferecida uma escolha.

Quando Qorg retornou, Handelhan se voltou contra ele. Embora Handelhan tivesse a habilidade de Brask com armas, Qorg não era o mesmo de quando Brask o derrotou há muitos anos. Eles duelaram, mas Qorg não viu vitória em matar seu ex-aliado e, antes que os outros semideuses viessem em auxílio de Handelhan, Qorg fugiu.

A partir de então, Handelhan lutou contra Pleth e Qorg e, no final do segundo século, tornou-se seu principal adversário. Cada movimento que eles faziam era combatido e, sem a pesquisa de Handelhan, eles não encontravam novas armas para a batalha. Felizmente, os Deuses Maiores proibiram Handelhan de fazer mais experimentos com a divindade, de modo que ele foi forçado a confiar “apenas” em sua extrema inteligência, habilidades com armas, leitura da mente e semideuses subordinados, isso tudo somado ao apoio dos Deuses Maiores.

Os adoradores de Pleth, que já eram rotulados como falsos crentes por todas as outras religiões, tiveram a maioria de seus membros mortos ou convertidos à força. Logo, sua religião se reduziu a um culto, com seu grande templo reduzido a uma ruína coberta de vegetação.

Qorg estava sempre fugindo, fugindo dos semideuses da guerra. Embora ele tivesse matado vários, eles não permaneceriam mortos, mas a morte de Qorg significava ser capturado nos Salões dos Imortais e realmente executado. Começou a parecer uma batalha sem esperança, mas ainda havia um vislumbre de esperança. Se ele conseguisse chegar à Cidadela da Montanha, talvez houvesse algum resquício dos experimentos de Handelhan, e talvez Qorg pudesse descobrir como tirar a divindade de outros semideuses.

Qorg se escondeu por vários anos no fundo de uma caverna profunda, aguardando seu momento. Em seguida, começou a cavar um túnel com apenas as mãos e, depois de muitos anos e centenas de quilômetros, emergiu em algum lugar não muito longe de nossa Cidadela.

Quando Qorg abriu minha porta, ficou surpreso ao me encontrar vivo. Handelhan havia dito a todos eles, sem nenhuma tristeza, que com minha divindade separada do Deus do Desejo, eu não tinha como me sustentar. Embora também tivessem sido separados de seus deuses, Pleth tinha seus adoradores, e até mesmo Qorg conseguiu reunir algumas pessoas que admiravam a lenda de um guerreiro inigualável que empunhava uma clava de ferro. Mas, conforme os cálculos de todos, eu deveria estar morto, sem ninguém para me oferecer uma única oração.

Embora eu estivesse de fato vivo, eu não sentia isso. Enquanto Qorg explorava as masmorras de nossa fortaleza há muito abandonada, tentei deixar que o que ele havia me contado fosse absorvido. O maior choque foi a traição de Handelhan, mas não tanto pelo fato de ela ter acontecido, mas por ele ter esperado até não ter outra escolha. Qorg estava certo sobre não confiar muito nele, mas eu me lembrei de quão longe havíamos chegado graças a ele.

Embora a Cidadela tivesse sido esvaziada por Handelhan muitos anos antes, esvaziando completamente a Biblioteca do Conhecimento Divino até o último livro, ele acabou por ignorar algumas partes das masmorras. Em uma câmara, oculta para todos, exceto para Handelhan e Qorg, que a haviam escavado, conseguimos encontrar um enorme caldeirão junto de alguns enormes recipientes de vidro abertos, cheios de um lodo gosmento obscenamente sujo. Reunindo as anotações espalhadas pela sala, descobrimos lentamente o terrível processo que Handelhan havia usado para extrair a divindade dos semideuses.

A gosma pútrida dentro dos contêineres de vidro era, conforme confessado nas anotações, nada menos que o Mal Destilado absoluto. O sangue de um semideus pervertido e corrompido com rituais indescritíveis era tudo o que era vil em forma líquida. Submergir um semideus em algo tão imundo forçava a divindade a sair dele, que decantava até o topo e podia ser drenada para um pequeno recipiente, para ser bebida por aquele que recebesse a divindade.

Ao examinar alguns dos rituais usados para destilar esse icor, fiquei horrorizado a ponto de questionar se poderíamos usá-lo ou não. Qorg compartilhava de sentimentos semelhantes, mas foi em frente e se justificou dizendo que os sacrifícios já haviam sido feitos e que seria um desperdício não usar o Mal Destilado.

Qorg nunca foi uma pessoa que eu considerasse extremamente inteligente. Ele gostava muito mais de músculos do que do cérebro, mas havia algumas coisas que ele sabia mais do que Handelhan. Estratégia militar era uma del, embora ele raramente se preocupasse em usá-la, mas armas eram outra. Qorg passou a maioria de um ano lendo as anotações que Handelhan deveria ter destruído, descobrindo maneiras de transformar o icor em uma arma.

Durante esse ano, deixei a Cidadela, viajando em direção ao Templo da Árvore de Um Olho. Tentei ficar longe de vilarejos e cidades, mas aqueles pelos quais passei tinham mudado bastante em relação aos que eu me lembrava. Os mortais haviam avançado sua tecnologia lentamente nos últimos trezentos anos, mas a cultura havia mudado drasticamente.

Os santuários para a Dama da Meia-Noite eram quase comuns, e os santuários para outros semideuses que antes estavam escondidos também foram trazidos à luz. Todo vício era agora aplaudido, e a adoração ao Desejo era maior do que qualquer outra. Os arautos gritavam apenas os preços dos bordéis e as datas dos novos carregamentos de escravos, enquanto os mendigos rezavam nas ruas para que alguém os comprasse.

Quando cheguei ao templo de Pleth, fiquei surpreso ao ver que ele havia envelhecido. Eu sempre me lembrei dele como um homem jovem e, mesmo depois do poder dele ter crescido muito, eu ainda pensava nele mais como um irmão mais novo do que qualquer outra coisa. Mas, como ele havia perdido muitos de seus seguidores e a divindade do próprio Deus da Natureza, ele não podia evitar de sentir e deixar a mostra o peso dos anos.

O velho me abraçou, louvando o sol e o vento por eu ainda estar vivo. Como isso era possível, ele não sabia, mas não foi algo em que ele pensou muito. Quando lhe contei o que havíamos encontrado na Cidadela, Pleth ficou em silêncio.

Quando terminei, ele me perguntou se estávamos ou não destinados a viver para sempre. Eu não soube como responder, e ele continuou dizendo que tínhamos vivido vidas longas e grandiosas e feito muitas coisas maravilhosas e terríveis. Cada um de nós tinha vivido a vida de mil homens, e talvez isso fosse tudo o que tinhamos por fazer.

Pleth não queria usar o icor. Ele não queria mais lutar. Estava velho e cansado, e não tinha mais medo de descobrir o que acontecia com um deus ruim quando ele realmente morria.

Por respeito a ele, deixei que as palavras ecoassem pela minha cabeça por um dia, levando-as o mais a sério possível. Mas, no final do dia, pedi que ele saísse comigo, para viajar para além de seu Templo.

Na primeira aldeia que vimos, forcei Pleth a ver o que havíamos feito. Eu havia abusado do meu poder e incentivado outros semideuses a abusar do deles. Embora os seguidores de Pleth tenham sofrido sob as mãos de outros, essas pessoas sofreram por suas próprias mãos e desejos e, se nada mais, era nossa responsabilidade consertar as coisas.

Pleth não precisou de muito mais para ser convencido. Enquanto voltávamos para seu templo, as árvores tremiam com sua raiva e eu me perguntava como poderia ter esquecido que Pleth sempre foi o mais forte entre nós.

Quando Qorg finalmente chegou ao templo, ele não veio sozinho. Um bando de guerreiros-sacerdotes cavalgava grandes carroças pela floresta, acompanhados de uma semideusa bastante familiar.

Ceret me cumprimentou pelo primeiro nome que lhe ofereci e abraçou Pleth de uma forma que teria sido obscena se não parecesse tão cômica graças à idade avançada de Pleth. A carranca de Qorg não diminuiu quando eles caíram na gargalhada, mas derreteu quando ela habilmente depositou um beijo em sua bochecha.

Enquanto comemorávamos naquela noite, Ceret me revelou o motivo de eu não haver morrido enquanto dormia. Ela levou algum tempo para contar toda a história, pois, de forma um tanto rude, ela continuava caindo na gargalhada, e eu não tinha certeza se estava entendendo o que era tão engraçado.

Os guerreiros-sacerdotes de Ceret haviam recontado a história da batalha contra o semideus controlador do fogo tantas vezes ao longo dos séculos, que meu papel cresceu e se expandiu até que alguns dos contadores de histórias juraram que eu havia sido o amante fiel de Ceret. Quando lutamos contra o inferno vivo, eu mergulhei nele devido ao meu amor e lutei dentro do próprio coração do fogo. O fato de eu ter vencido ou não também parecia depender do contador de histórias, mas a lenda de Cym, o Devorador de Fogo, espalhou-se pelas terras do sul e perdurou até hoje.

Quando perguntei o que havia de tão engraçado em tudo isso, Ceret respondeu que nunca esqueceria a expressão do “grande Devorador de Fogo” depois que cavalguei em frente e fui engolido pelas chamas, como se eu tivesse me lembrado de repente que o fogo era quente.

Qorg e Pleth riram demais com isso, mas depois de algum tempo começaram a discutir se isso poderia ou não significar uma mudança em meus poderes. Como eu estava afastado do Deus do Desejo e era adorado por mergulhar em um fogo, eles pensaram que talvez eu tivesse adquirido uma nova habilidade.

Vários dedos queimados e uma sonora gargalhada de todos, exceto de mim, e essa noção foi refutada.

Na manhã seguinte, não houve risadas, pois Qorg revelou o conteúdo das carroças. Lá dentro estavam os contêineres de icor, juntamente com horríveis engenhocas que devem ter sido projetadas por Qorg. Pleth e Ceret olharam para eles com desprezo silencioso, e eu notei que algumas das engenhocas pareciam seringas enormes.

Qorg explicou sua ideia simples. Handelhan havia aplicado o icor externamente, mas o fez porque o objetivo final de seu método era extrair a divindade para infundi-la em outra pessoa. Já o nosso objetivo, no fim das contas, era só matar deuses.

Quando Qorg e Ceret partiram mais tarde naquele dia, Pleth me perguntou o que eu pretendia fazer. Era algo que eu vinha remoendo em minha cabeça desde o meu breve período de falsa iluminação, e desde então essa ideia ficou cada vez mais forte, ainda mais depois de todo esse tempo.

Com meu poder, eu queria fazer o oposto do que vinha fazendo no passado. Eu queria mudar os desejos das pessoas para coisas que as satisfizessem mais, não menos.

Fui até o vilarejo mais próximo e procurei os mendigos que eram tão pobres que queriam que alguém os tomasse como escravos. Não lhes ofereci esmolas, mas, lenta e cuidadosamente, fiz com que quisessem assumir o controle de suas próprias vidas, em vez de serem escravizados.

Senti-me um pouco culpado quando a revolta foi reprimida de forma sangrenta, mas continuei meu trabalho, fazendo com que cada prostituta quisesse respeito em vez de dinheiro. Fui a cada dono de loja, convencendo-os de que clientes mais felizes eram mais importantes do que suas margens de lucro, e os rapazes e moças foram instruídos a buscar seus verdadeiros amores, não se contentando com sexo ou conforto.

Para o sacerdote da Dama da Meia Noite, eu me esforcei para pensar em alguma forma de usar meu poder, mas por fim acabei derrubando seu braseiro e ateando fogo em seu santuário.

Não demorou muito para que eu fosse expulso do vilarejo, mas quando todos os escravos perceberam que a fuga para a liberdade era menos importante do que a morte de seus senhores, o vilarejo se tornou um lugar e tanto para reunir convertidos à Árvore de Um Olho.

A bolha do Desejo que eu havia estourado já estava muito avançada e, enquanto eu viajava com Pleth como meu guardião, causamos tumultos e caos como nunca. Os mortais não davam mais ouvidos aos sacerdotes do Desejo e começaram a escolher por si próprios o que queriam. As pessoas deixaram de escolher as rotas mais fáceis, e passaram a lutar para obter o que nunca haviam percebido que realmente buscavam.

Pleth, já idoso, era um pregador e tanto, especialmente quando as pessoas percebiam o quanto queriam ouvi-lo. Era quase como se pensassem que ele era o único que podia ser ouvido. Era quase como se elas pensassem que uma nova religião seria capaz de satisfazer seu profundo desejo de ordem e moralidade.

Não demorou muito para que os outros deuses percebessem e enviassem muitos de seus servos atrás de nós. Mas, a cada cidade, a adoração à Árvore de Um Olho só crescia, assim como o poder de Pleth. Os cavalos jogavam seus cavaleiros enquanto as árvores os prendiam, e cada uma de nossas fugas se tornava mais fácil do que a anterior.

Qorg e Ceret também estavam ocupados. Quando retornaram ao Templo da Árvore de Um Olho restaurado após três anos incrivelmente longos, eles tinham uma história e tanto para contar. Enquanto nos banqueteávamos, fomos informados de grandes batalhas contra outros semideuses da guerra, incluindo um que tinha um poder terrivelmente irritante de sempre poder levantar o escudo para bloquear tudo o que viesse em sua direção.

Embora Ceret tenha atirado flecha após flecha, até que todas as suas muitas aljavas estivessem vazias e o escudo de ferro de três polegadas de espessura do semideus contivesse mil ou mais flechas, ele continuou a avançar em direção a ela. Mesmo quando dez homens o cercaram, ele bloqueou cada um de seus golpes e os eliminou um a um. Quando ele finalmente chegou a Ceret, com a vitória garantida, Qorg correu em frente e bateu com sua clava de ferro com tanta força que a onda de choque que soou do escudo matou várias pessoas e ensurdeceu o resto do campo de batalha.

Enquanto o semideus jazia no chão, Qorg forçou a agulha de um de seus Matadores de Deuses sobre o escudo que ainda conseguia se erguer fracamente, apesar de o braço do semideus ser nada mais do que uma gelatina presa em um saco de pele. Qorg enfiou a agulha no crânio do semideus e viu sua divindade jorrar de seus olhos, nariz e orelhas.

Aconteceram várias histórias como essa, e o fato de ter matado seis semideuses e absorvido seus poderes talvez o tenha tornado o mais forte de todos os semideuses da Guerra. Ele também não voltou sem presentes e nos apresentou vários frascos de prata em uma corrente.

Para Pleth, a essência de um semideus que podia controlar os ventos, que morreu quando Qorg fez um túnel sob ele e o arrastou para o subsolo.

Para mim, Ceret estava muito orgulhosa de me presentear com a essência do semideus que havia me matado há tantos anos e, embora um poder da natureza normalmente fosse para Pleth, ela me pediu para realmente vestir o manto de Cym, o Devorador de Fogo.

Em meio a todas essas boas notícias, eles também trouxeram notícias sombrias. Os Deuses Maiores não permaneceram ociosos, e Handelhan havia provado seu valor para eles novamente. Ele havia conseguido criar Avatares para os Deuses Maiores, corpos no reino mortal que eram indestrutíveis e permitiam que eles canalizassem todo o seu poder. Qorg e Ceret viram o Avatar do Deus da Guerra em um campo de batalha e observaram como ele despedaçou um castelo com um único movimento de seu mangual.

Essa notícia foi realmente grave, especialmente quando foi seguida de sinais de que os Deuses Maiores estavam cansados de nosso jogo contínuo. Qorg e Ceret haviam retornado, não para compartilhar histórias, mas para reunir nossas forças a fim de desafiar os Deuses Maiores e os semideuses que eles haviam reunido.

Era cedo demais. Os adoradores de Pleth haviam crescido em número tremendamente, talvez a ponto de ele rivalizar o próprio Deus da Natureza, Já eu não tinha seguidores em meu nome além de alguns contadores de histórias e crianças do sul. Qorg e Ceret, embora agora irradiassem poder de forma tangível, não podiam ter esperança de derrotar os Avatares e os Semideuses, por mais fortes que tivessem se tornado.

Eu soube então que não era uma questão de escolha. Os Deuses Maiores estavam chegando, e não tínhamos ninguém para quem oferecer nossas orações.

Qorg e Pleth não perderam tempo. Naquela mesma noite, eles começaram a construir defesas, com Qorg usando um de seus novos poderes para convocar as almas dos engenheiros de guerra para cavar trincheiras enormes e construir muros altos. Pleth fez com que a floresta crescesse, crescesse e crescesse, até que houvesse árvores mais largas do que casas e com várias centenas de metros de altura.

Eu sofria com o controle das chamas, o que se mostrou muito mais difícil do que simplesmente querer que elas fizessem o que eu queria. Mais frequentemente do que qualquer outra coisa, eu tentava mudar ou fazer crescer uma chama, mas acabava apagando-a. No final da semana, tive de me consolar com a ideia de que apagar incêndios provavelmente era um poder tão útil quanto os criar.

Se eu tivesse mais tempo, teria gostado muito de aprender a criar infernos gigantescos, mas os deuses não foram tão pacientes. Nós os ouvimos chegando a muitas centenas de quilômetros de distância, uma grande procissão condizente com os poderes que governavam o mundo.

As defesas de Pleth e Qorg eram impressionantes, ainda mais considerando o pouco tempo que tinham. Árvores maciças se erguiam sobre enormes penhascos como gigantes, cada uma delas equivalente a um pequeno exército. E nós também tínhamos um pequeno exército, na forma de esqueletos alimentados pelas almas de guerreiros mortos, trazidos de volta ao reino mortal por Qorg. Animais de todas as espécies haviam se reunido, e os sacerdotes guerreiros de Ceret manejavam catapultas e balistas.

De pé sobre o telhado de seu Templo, Pleth olhava para longe, lendo os ventos e ouvindo o barulho dos pássaros. Ao lado dele estava Ceret, com seu arco armado e uma parede de flechas disposta atrás dela. Qorg havia corrido para as linhas de frente, sem nem se dar ao trabalho de se despedir, e eu estava no pátio do Templo, tentando desesperadamente fazer algo que se assemelhasse remotamente a uma bola de fogo.

A batalha começou rapidamente. Os semideuses, a maioria deles servos da Guerra, lutavam contra animais, árvores, esqueletos, o vento e uma saraivada de flechas e pedras. Cada uma de suas lutas era digna de um poema épico, mas a maioria deles não conseguiu chegar a sequer um quilômetro do Templo. Os poucos corajosos que conseguiram foram mortos pelas flechas de Ceret, que sempre atingiam seus alvos e agora também explodiam sob o impacto.

Quando Ceret disse que tinha certeza de que havia acertado o mesmo semideus voador quatro vezes, quase desmaiei ao pensar nisso. Não importava quantos semideuses derrotássemos, eles simplesmente retornavam, inteiros e descansados, enquanto nossas forças eram lentamente desgastadas.

Se tivéssemos alguma chance de vitória, teria que ser com Qorg. Lutando perto das linhas de frente, ele havia saído com um conjunto de agulhas do Matador de Deuses e estava usando-as rapidamente.

Quando voltou, eu não o reconheci, pois ele havia crescido e tinha quatro metros de altura e um conjunto extra de braços. Ele só ficou o tempo suficiente para pegar um novo suprimento de Matadores de Deuses e depois fugiu mais uma vez, com sua clava de ferro em uma das mãos e um grito interminável saindo da outra.

Na vez seguinte em que ele voltou, pensei que ele tivesse obtido o poder de voar. Quando ele não diminuiu a velocidade e bateu na parede de um templo, percebi que ele havia sido arremessado. O Avatar da Guerra não estava muito atrás, com um mangual dourado em suas mãos enquanto saltava.

Corri para Pleth, para tentar fazer com que ele ajudasse Qorg, mas ele estava lutando sua própria batalha. O Avatar da Natureza havia convocado feras de um tempo esquecido, e elas estavam devorando os outros animais. As árvores gigantes murchavam quando se aproximavam dele, e as flechas de Ceret se transformavam em flores inofensivas quando o atingiam.

Insisti com os sacerdotes-guerreiros de Ceret para que fugissem em vez de lutar, mesmo sabendo que suas vidas estavam perdidas. Enquanto eu observava, horrorizado, cada um deles encontrou um parceiro e, sem muita cerimônia, se esfaquearam mutualmente.

Uma ótima maneira de anunciar a presença do Avatar do Desejo.

Ele havia escolhido a forma de uma bela mulher e, com um aceno de braço, obrigou-me a me ajoelhar diante dele. Ajoelhei-me imediatamente, mas quando ele se aproximou, estendi meus braços em sua direção, convocando todo o fogo que pude.

O fogo nem sequer chamuscou seus cabelos longos e esvoaçantes ou seu vestido branco transparente, e não precisei que sua compulsão me dissesse para parar quando o fiz. Quando ele se aproximou, mais belo do que qualquer coisa que eu já havia imaginado, ele literalmente me deixou sem fôlego.

Eu não corria o risco de morrer, pois um semideus não precisava de ar, comida ou água, mas a dor em meus pulmões continuou a aumentar até parecer que eu havia comido fogo. Chorei, pois não conseguia gritar, e o deus que eu um dia chamei de meu Deus me agraciou com a mais bela risada que já ouvi.

Ele se divertiu com a ideia de que eu havia conseguido resistir às suas compulsões uma vez. Ali estava eu, que não era mais nem mesmo seu servo, e não conseguia resistir à sua sugestão mais simples, mesmo ao custo de uma dor tão terrível.

Para meu horror, enquanto eu permanecia ajoelhado em frente ao Avatar, Qorg foi jogado no chão à minha frente, com todos os braços arrancados do corpo. Ele jorrava sangue de inúmeros ferimentos e sua clava de ferro havia sido enfiada na parte inferior de suas costas, perfurando sua coluna vertebral.

O Avatar da Guerra não mostrava ferimentos, rindo conforme ele caminhava casualmente até nós, ele pegou Qorg pela perna e começou a girá-lo no ar. Com um estalo de seu pulso, a perna de Qorg foi rasgada de seu corpo, que voou arremessado para a floresta. O Avatar da Guerra começou a assoviar calmamente, soltou a perna e correu para perseguir Qorg.

Um fim apropriado para todos nós, eu supuz. Eu não queria nem saber o que estava acontecendo com Pleth no momento, nem gostava da ideia do destino de Ceret. Tínhamos perdido e perderíamos tudo, total e completamente, tudo porque tínhamos desejado um poder além do nosso alcance.

Em total agonia, mergulhei no desespero e busquei o puro esquecimento, rezando para que meu Deus simplesmente me matasse. Mas o Avatar continuou a me observar enquanto eu fazia movimentos lamentáveis de engasgo, às vezes dando uma risada que soava muito menos doce.

Mas, enquanto eu continuava a pedir a morte, o Desejo parecia se dissipar lentamente de mim.

Por um breve e puro momento, pensei que estava sendo inundado de esperança e que estava prestes a abraçá-la de todo o coração. Mas eu não havia perdido o juízo, nem a dor agonizante, e eu era um semideus do Desejo há tempo suficiente para saber quando meus próprios desejos estavam sendo manipulados.

O Avatar do Desejo não queria que eu desejasse tanto morrer.

O Avatar do Desejo não queria que eu quisesse morrer.

Ele não queria que eu morresse.

Eu não sabia por quê. Honestamente não posso dizer que realmente me importava. Pode ter sido porque ele queria me torturar por mais algum tempo, ou talvez porque, bem lá no fundo, em algum lugar, ele realmente se importava comigo e queria que fôssemos melhores amigos.

Tudo o que eu sabia era que, se ele desejasse alguma coisa, qualquer coisa que fosse, eu faria o possível para negá-lo.

Lutei contra a dor, sabendo que isso era muito mais fácil do que tentar combater as compulsões do Avatar, e me esforcei para formar uma única imagem em minha mente. Felizmente, não foi muito difícil, pois já parecia que havia um fogo em meu peito.

Quando explodi em chamas, permaneci no mundo mortal apenas o tempo suficiente para ver a expressão de choque do Avatar.

Estava agradavelmente frio quando acordei e me assustei ao ver Handelhan olhando por cima de mim. Não pulei, nem gritei, nem mesmo tentei me distanciar um pouco de nós. Apenas me sentei calmamente, virei-me para ele e o cumprimentei.

Ele me ofereceu uma mão, que eu aceitei, e enquanto ele me ajudava a levantar, perguntei o que aconteceria em seguida.

Antes de dizer qualquer outra coisa, ele me perguntou se eu tinha vindo aqui porque eu me lembrava de ele ter dito, há muito tempo, que estar nos Salões dos Imortais geralmente oferecia oportunidades a um semideus, quando ele não tinha nenhuma em outro lugar. Eu menti e disse que tinha vindo.

Sorrindo agora, ele explicou que os avatares foram projetados para que uma parte do poder do Deus Maior, juntamente com sua consciência, fosse enviada para o reino mortal. Isso significava que o restante de seu poder permanecia no reino dos deuses. Na verdade, ele havia sido colocado nos Salões, junto de vários outros semideuses, para ajudar a proteger os corpos indefesos. É claro que nenhum desses semideuses sabia que ele possuía as habilidades de Brask.

Talvez tenha sido a primeira vez que eu realmente quis ir aos Jardins do Desejo. Lá, o enorme corpo adormecido de uma Divindade Maior estava reclinado em um divã, e eu aproveitei o momento para perguntar por que ele simplesmente não acordava. Handelhan sorriu e disse que havia passado um bom tempo desenvolvendo aqueles corpos de Avatares para que fosse quase indestrutíveis, portanto, seria necessário um bom esforço para que os deuses os destruíssem. Sorrindo, Handelhan pegou uma adaga, revestiu-a com um líquido escuro e a enfiou no coração do Deus do Desejo.

Houve um jorro de líquido brilhante e, a princípio, ele pareceu ir em direção a Handelhan. Mas, quase como se tivesse sentido o meu cheiro, ele se curvou em torno dele e espirrou em mim. Enquanto continuava a jorrar do corpo divino, senti um poder além de todo conhecimento, além de todas as palavras.

Quando terminei de absorver o poder, percebi que os Jardins haviam mudado. Não era mais barulhento e tropical, era uma clareira serena com algumas árvores espalhadas. Handelhan me encarou, e eu examinei seu coração, descobrindo seu desejo mais verdadeiro. E, com um simples pensamento, Cymdra apareceu diante dele.

Embora o reencontro deles tenha sido muito comovente, eu era um bilhão de milhões de sóis de energia ardente e tinha alguns assuntos que precisava resolver.

Mudando o desejo de Handelhan para um mais urgente, fomos em direção à Biblioteca do Conhecimento, onde residia o Deus do Conhecimento.

Ele me disse que sabia que eu viria, também disse que sabia que Handelhan o trairia duas vezes. Ele também sabia qual seria o resultado de uma batalha entre o conhecimento e o desejo.

Ele sabia muito, e é por isso que nem se deu ao trabalho de resistir quando Handelhan o cortou e absorveu sua essência.

Imediatamente, Handelhan começou a gritar sobre o quanto ele sabia e como eu deveria ficar totalmente admirado. Quando consegui acalmá-lo e perguntei se ele sabia qual seria o nosso próximo passo, ele disse que seria enviar Cymdra para baixo, para que ela matasse Qorg e Pleth antes que as outras duas divindades tivessem a chance de perceber o que estava acontecendo e para ajudá-los a obter o poder que buscávamos há tanto tempo.

Antes que pudéssemos nos parabenizar, nos encontramos em uma grande câmara, com paredes que se estendiam além do espaço e um teto que poderia ser também o chão. Lá, os outros Deuses Maiores haviam se reunido e começaram a nos julgar, cada um em sua vez.

Todos os nossos atos, todos os nossos pensamentos, todos os nossos sonhos e desejos, todos eles foram expostos diante dos Deuses em um único instante, ou talvez em uma eternidade, e os Deuses Maiores começaram a falar como se fossem uma só voz.

Qorg provou ser um lutador acima de todos os outros, aprendendo com cada derrota e alcançando a vitória no final. Quando os Deuses se perguntaram se ele deveria se tornar o novo Deus da Guerra, apenas o menor Deus da Discórdia se opôs, como de costume.

Pleth havia perturbado muitas das leis da natureza, e nossas conquistas e batalhas haviam deixado suas cicatrizes no mundo. No entanto, em nenhum outro lugar era possível encontrar uma pessoa que tivesse mais compaixão pela natureza, poucos sequer tinham mais compaixão em geral, e ele foi aplaudido pela maioria.

Handelhan havia realizado coisas terríveis, horríveis e indescritíveis. A maioria dos Deuses sentia repulsa só de pensar nele, e o fato de ele ter trazido o Mal Destilado para os Salões dos Imortais era um crime inafiançável.

No entanto, ele havia feito tudo isso pelo bem do conhecimento e foi acordado que, após três ciclos de eternidade no vazio sem fim, ele seria instituído como o Deus do Conhecimento. Até lá, Cymdra foi considerada relativamente agradável e seria bom ter uma Deusa do Conhecimento para variar.

Os Deuses Maiores acharam que eu seria apenas razoável no que se refere a um Deus do Desejo, mas nenhum deles se sentiu realmente compelido a não me deixar ser um Deus Maior. Eles também pediram que eu começasse a trabalhar o mais rápido possível.

Saímos daquela câmara com uma sensação de realização irradiando de nós.

Antes de partir para a jornada no vazio sem fim, Handelhan enviou alguns de seus novos servos para lidar com os Avatares enfraquecidos. Apenas semiconscientes, os Avatares mal conseguiram resistir ao serem jogados em um vulcão, que Handelhan nos garantiu que provavelmente os destruiria.

Qorg se desculpou por ter pensado que Handelhan era algo além de um grande amigo, e eles se abraçaram como irmãos. Pleth, mais uma vez jovem, me agarrou pelo ombro e me puxou em direção ao Deus da Guerra e ao Deus do Conhecimento.

Nossos desafios estavam apenas começando, com todas as responsabilidades dos Deuses Maiores sobre nós. Mas, enquanto estávamos ali, com os braços em volta dos ombros um do outro, prometemos que nunca esqueceríamos o tempo que havíamos passado como deuses inferiores.

O FIM