Texto original escrito em inglês por um usuário anônimo do 4chan, postado no fórum /tg/ de jogos tradicionais, em 5 de janeiro de 2013. Tradução por Augusto Massini Pinto
Capítulo 1 - A aliança dos semideuses
A nossa campanha começou com só um pouco de floreio. Nosso Mestre do Jogo se anunciou como o maior Deus de um panteão grandioso, que habita em um tempo e espaço que nenhum outro deus pode alcançar, julgando as ações de todos os seres inferiores. Pela mão dele, o universo girava e, pelas suas palavras, todas as coisas tremiam.
Na verdade, isso foi até bem moderado se comparado com o drama de sempre.
Nós iriamos, cada um, tomar os papéis de semideuses, meio deuses ou quase-deuses, ou seja como for, o que importa é que não seríamos deuses plenos de verdade. Nosso maior poder seria a nossa imortalidade, que nos permitiria caminhar pelos mundos dos Deuses Maiores, e também nos impediria de sermos mortos por qualquer coisa menor que os meios terríveis necessários para matar um deus.
Nossos corpos, não mais fortes que os de pessoas comuns, poderiam ainda ser destruídos no mundo mortal, mas iriamos simplesmente ressurgir nos Salões dos Imortais.
Nosso outro poder dependeria de qual deus iriamos servir. Depois de muita discussão, nós conseguimos resolver quais seriam os nossos personagens.
O primeiro a decidir foi o semideus Qorg, um servo do Deus da Guerra. Seu poder escolhido foi simplesmente grande força.
O próximo foi Handelhan, um servo do Deus do Conhecimento. Ele escolheu o poder de ler mentes, e foi nesse momento que o nosso Mestre do Jogo quis garantir que ele entendia que o seu poder (e o de todos nós) não poderia ser usado em seres divinos, e sim somente nos mortais.
Após pensar um pouco, Pleth passou a existir, como um servo do Deus da Natureza. Ele teria a habilidade de dar movimento à árvores, permitindo-as que se movam conforme a vontade dele ou mesmo a própria.
Finalmente, eu decidi servir o Deus do Desejo, como o quase-deus Cym. Minha habilidade seria a de convencer mortais que eles poderiam satisfazer seus desejos e vontades com outra coisa. Se alguém estiver com fome, por exemplo, eu poderia dizer-lhe que um copo d’água iria saciá-la.
Com os nossos personagens definidos, nosso Mestre do Jogo explicou que, embora servíssemos os Deuses, nós também desejávamos suas posições e poder, e dependeria de nós decidirmos como traçar esse caminho tortuoso de subserviência e subterfúgio.
Nós, os quatro semideuses, facilmente enxergamos os benefícios de trabalharmos juntos, e, enquanto Qorg esculpia uma fortaleza no topo de uma montanha com suas mãos nuas, nós discutimos qual o método que se faria necessário para obter a verdadeira divindade. Um século se passou até que Qorg estivesse satisfeito com a nossa Cidadela, mas levou mais dois até que o nosso plano estivesse pronto para ser colocado em ação.
Handelhan usou seus três séculos juntando saberes sobre os deuses, aprendendo o que pôde de suas naturezas. Dez das maiores câmaras de dentro da nossa Cidadela se tornaram a Biblioteca dos Saberes dos Deuses, cheia de estudiosos que pensavam que ponderar a natureza da divindade iria revelar a verdade sobre o mundo. Esses estudiosos trabalharam arduamente em suas contemplações, mas eu diria que, apesar de eles terem revelado um belo número de verdades interessantes sobre os deuses, nenhum deles morreu satisfeito.
Pleth era do tipo itinerante, e, na verdade, não gostava de ficar na montanha por muito tempo. Ele nos ajudou de diversas maneiras, provendo nossa Cidadela com móveis e estantes vivas, e até conseguiu produzir uma árvore que dava livros em branco ao invés de frutas ou castanhas. Mas, além disso, ele era indiferente e distante, somente aparecendo uma vez por década para ver como estavam suas árvores. Acho que parte dele estava em conflito, como se ele se perguntasse se ele se tornar o Deus da Natureza era realmente o melhor para a natureza, e, por conta disso, houve muitas vezes em que desejei que meu poder pudesse agir sobre ele.
Qorg passou o seu tempo depois de terminar a nossa fortaleza dormindo. Ele eventualmente acordava, descia a montanha, lutava em qualquer guerra disponível, morria, voltava à vida, retornava à fortaleza e voltava a dormir.
Eu usei a maior parte do meu tempo descobrindo as limitações da minha habilidade. A restrição mais importante era que eu poderia somente deslocar desejos na direção de erros razoáveis. Eu não poderia fazer com que alguém exausto desejasse correr ao invés de dormir, mas eu poderia fazer com que alguém que queira fortemente maçãs passasse a querer pêras em seu lugar. Eu não podia aumentar seus desejos, e também não podia os diminuir, e eu acho, embora não tenha certeza, que todas as vezes que eu usava meu poder, a pessoa afetada se tornava um pouco menos feliz.
Com esses três séculos de planejamento no passado, era a hora de fazermos a nossa jogada, para nos estabelecermos como os novos Deuses da Guerra, Conhecimento, Natureza e Desejo.
Capítulo 2 - Ascensão e Subterfúgio
Nosso primeiro passo era uma redução geral da adoração. Tínhamos que reduzir o poder dos deuses que servíamos, para limitar o quanto eles poderiam interferir com os nossos planos. Ao reduzir a quantidade de seguidores desses quatro deuses, nós poderíamos, então, prosseguir na formação de novos sectos de adoradores que adorariam aspectos particulares desses deuses, no caso, esses aspectos sendo nós mesmos.
Reduzir a adoração à natureza foi fácil. Com Qorg na liderança, nós ficamos 50 anos liderando exércitos a destruir culturas tribais. Pleth, que para não chamar suspeita do deus a quem ele servia, ficou ausente dessa campanha. Isso foi bom por outro motivo, afinal, chacinamos muitas pessoas de vários níveis de inocência que genuinamente amavam a natureza.
Foi durante essa última campanha que encontramos outro semideus, um que tentou se opor contra nós. Nosso exército foi cercado por todos os tipos de animais, e nós teríamos sido derrotados caso Qorg não tivesse simplesmente marchado sozinho adentro do acampamento adversário e esmagado o semideus inimigo ao arremessar um bisão nele. Para a nossa boa sorte, o semideus sobreviveu, embora com seu corpo aos pedaços, e após submetê-lo a alguns sedativos, Handelhan o arrastou de volta à Biblioteca dos Saberes dos Deuses.
Com a maioria das sociedades tribais com uma fração do tamanho que já tiveram, a adoração à natureza diminuiu rapidamente. Pleth tinha sido ordenado por seu deus a fazer o que ele pudesse pelos adoradores remanescentes, então, em só uma década, já passaram a existir pequenos santuários dedicados ao próprio Pleth, embora através da imagem de uma árvore com um grande olho no centro de seu tronco.
Tentamos o desejo em seguida. Embora esse não tenha sido tão fácil. Havia poucas pessoas que visivelmente adoravam o desejo, já que o meu deus não era exatamente um dos maiores atores do grande panteão. Os únicos santuários dedicados ao desejo eram pequenos, frequentemente ocultos e todos tinham uma aparência um tanto sensual (o que tendia a, na verdade, prejudicar a adoração genuína).
Nós tentamos resolver o problema de diminuir a adoração do desejo fundando ordens ascetas, mas depois de três décadas sem a mínima mudança, abandonamos a ideia. Talvez o nosso plano tenha falhado por conta da adoração do desejo já ser bem pequena. Mas acho que na realidade as ordens ascetas não tinham tanta influência, e, talvez, ao providenciar-los com fundos adicionais, nós tenhamos, na verdade, conseguido com que eles tenham a habilidade de resistir ao desejo reduzida.
Essas três décadas não foram um desperdício, no entanto. Pleth reunira um grupo de seguidores de tamanho respeitável, especialmente depois que Qorg, sob um novo manto, passou a defender as tribos dos restos do nosso antigo exército. Com essa quantidade considerável de seguidores, Pleth havia conseguido um novo poder, a habilidade de acelerar o crescimento de árvores de anos a meras horas. Em combinação com a habilidade de animá-las, Pleth podia criar um pequeno exército sempre que quisesse, mas ele tinha insegurança sobre fazê-lo. Ele não achava que era sábio militarizar as forças da natureza, então concordamos em não testar nossa sorte com forças que não controlávamos completamente.
Handelhan também havia estado um tanto ocupado. Com o corpo do semideus que controla animais sob constante sedação, e um número de estudiosos trabalhando o dia todo fazendo experimentos nele, ele fez grandes avanços sobre como transferir a essência divina de uma pessoa a outra. Embora não houvesse nada realmente útil ainda, Handelhan nos prometeu resultados até o fim do século.
Deixamos o desejo de lado, e decidimos que seria um bom momento para nos concentrar em reduzir o poder do Deus do Conhecimento. Handelhan fez isso de uma forma um tanto direta, visitando cada uma das grandes escolas e academias, examinando as mentes de todos os professores, procurando pelas pessoas mais inteligentes do mundo. Com a minha ajuda, conseguimos convencê-las de que elas não queriam ensinar ninguém, e que, na verdade, gostariam de fazer sua pesquisa em outro lugar. Estabelecemos uma academia com todas as mentes mais brilhantes, com ambos Handelhan e eu trabalhando incansavelmente. Gradualmente, nós os levamos a pesquisar assuntos que iriam auxiliar os nossos objetivos.
Os professores que se recusavam a se juntar a nós, mesmo após eu tentar persuadi-los e Handelhan tê-los chantageado com os seus maiores e mais ocultos segredos, eram simplesmente removidos. Passados quarenta anos, a redução na educação e na proliferação de conhecimentos em geral era bastante tangível, fato que levou à convocação de Handelhan para uma grande reunião com o Deus do Conhecimento e todos os semideuses que o serviam.
Handelhan foi poupado de qualquer culpa, já que ele havia fundado um dos últimos refúgios de conhecimento do mundo, embora a nossa academia fosse muito mais uma prisão intelectual que qualquer outra coisa. Sem informações o suficiente para fazê-lo agir, o Deus do Conhecimento terminou a reunião sem decidir nada. Esse encontro, no entanto, se provou bem útil para nós, já que Handelhan havia descoberto um oponente, na forma de um semideus chamado Maleon.
Maleon estava correto ao pensar que Handelhan estava, na realidade, trabalhando contra o Deus do Conhecimento, mas esse meu aliado era surpreendentemente hábil em agir como tolo. No final da reunião, as acusações de Maleon não conquistaram nada além de fazer Handelhan decidir que ele seria o segundo semideus a ser adicionado à sua coleção.
Capítulo 3 - Agregando Poder
A captura de Maleon deu quase que certo demais. Embora Maleon tenha imunidade aos nossos poderes devido à sua divindade, ele havia escolhido viver dentre os mortais, e até escolhera uma esposa mortal. Handelhan conseguiu se aproximar dela e conseguiu ler seus pensamentos, descobrindo cada uma das fraquezas de Maleon. Então, ele me pediu para tentar fazer com que a esposa o amasse no lugar de Maleon, mas eu disse ter falhado, já que eu preferia ser percebido como fraco do que não cooperativo.
No fim, um semideus cujo único poder era o de ler livros em ritmo acelerado se provou ser um alvo de fácil captura. Usando o conhecimento roubado da esposa dele, Qorg conseguiu se esgueirar adentro a fortaleza de Maleon, e o subjugou sem muita dificuldade. Uma vez que Maleon foi sedado e trazido de volta à nossa Cidadela, Handelhan começou os experimentos.
Enquanto Handelhan esteve ocupado em nossas masmorras cada vez mais profundas, e Pleth estava juntando mais seguidores sob o estandarte da Árvore-de-um-olho, Qorg e eu cavalgamos montanha afora para semear um pouco de caos generalizado. Qorg precisava espalhar as chamas da guerra para apaziguar o deus a quem ele servia, enquanto eu tentava pensar algo construtivo para fazer com o meu tempo. No fim, eu só acabei convencendo generais que desejavam a paz de que a única forma de conseguí-la seria atacar preventivamente todas as ameaças em potencial à sua volta. De alguma forma, essa ironia satírica não conseguiu me animar de maneira alguma.
Enquanto eu viajava com Qorg, eu descobri que ele não confiava muito em Handelhan. Caso o nosso aliado conseguisse eventualmente desvendar uma maneira de transferir a divindade, Qorg temia que ele poderia um dia decidir tentar roubar os nossos poderes. Achei essa ideia um tanto divertida, mas eu disse ao Qorg para não se preocupar, já que caso Handelhan tentasse nos trair, no mínimo poderíamos avisar os Deuses Maiores para arruinar qualquer plano que ele tivesse. O que falei pareceu não confortar Qorg, já abrir um caminho trespassando o exército inimigo certamente o fez, ao menos um pouco.
No final do século, Handelhan tinha cumprido sua promessa, e nos mostrou a forma ressequida de Maleon. A jovial aparência de um semideus foi tirada dele, e no fim, ele jamais acordou do sono que Handelhan o havia imposto, perecendo depois de alguns anos sob o cuidado de sua esposa. Mas nenhum de nós sequer parou para pensar sobre o nosso antigo inimigo, já que Handelhan procedeu à demonstração ao ler um romance inteiro no intervalo de um minuto. Ambos Qorg e eu estávamos impressionados, e imediatamente decidimos que capturar outros semideuses seria a nossa tarefa para os próximos séculos.
Quando Pleth retornou de suas andanças, nós o convencemos a absorver a essência divina do semideus controlador de animais que havíamos capturado há muito tempo. Com esses poderes adicionados aos seus, Pleth era realmente uma força formidável, e o culto dedicado a ele prosperou sob a sua proteção. Ao ouvir que a nossa prioridade número um era a captura de outros semideuses, Pleth concordou com Qorg que devíamos tentar capturar um servo do Deus da Guerra.
Qorg já tinha um alvo em mente. Ele era um semideus rival chamado Brask, com o qual Qorg já encontrara várias vezes no campo de batalha, com cada um de seus encontros terminando na morte temporária de um deles. Qorg sugeriu esse semideus porque ele seria fácil de localizar, já que Qorg conhecia quais áreas ele costumava frequentar, e também porque Qorg tinha uma boa chance de derrotá-lo sozinho, e uma chance muito boa de fazê-lo com a ajuda de Pleth.
Encontramos Brask liderando um bruto exército de tamanho respeitável, no qual passei um ano como um seguidor. Teria sido um ano difícil, mas meu poder fez com que viver dentre os soldados fosse relativamente fácil, já que eu podia redirecionar qualquer ira mirada a mim para qualquer outro seguidor de acampamento. Minha presença em si já pareceu drenar o estado de espírito do exército, com todos em constante mau-humor, já que eu vivia direcionando a raiva deles um contra o outro. No final do ano, o exército havia sido reduzido a um terço de seu tamanho original, graças a baixas e deserções. Nesse ponto, Qorg já não conseguia mais esperar.
O exército que Qorg havia juntado num único ano era impressionante, tinha por volta do dobro da dimensão do exército de Brask. Este, não sendo tolo, fugiu do exército de Qorg e se enfurnou, junto de sua força principal, em um castelo fortificado. Logo após Qorg ter dizimado as forças que ficaram para fora, ele se deu por si, encarando um castelo completamente fornecido e guarnecido.
Nesse momento, eu havia trocado de papel, de um seguidor de acampamento para um atendente do castelo, e, enquanto eu passava meus dias com tarefas servis, eu não me incomodei em fazer nada demasiadamente esperto. Brask era muito diferente de Qorg, extremamente inteligente, ao ponto de que, caso eu tenha agido muito bruscamente nos confins do castelo, ele poderia conseguir traçar qualquer caos que causei de volta a mim. Então, tive de me contentar com simplesmente semear a miséria por toda parte, convencendo principalmente as pessoas de que a melhor maneira de aliviar os seus temores era comer e fingir que tudo estava bem.
Brask, cujo poder divino era a completa maestria sobre qualquer arma que ele empunhasse, passou grande parte de seu tempo instruindo seus soldados de elite. Assistindo Brask, não pude deixar de imaginar Qorg possuindo essas habilidades. Isso me fez pensar que conseguiriamos conquistar o mundo todo após capturarmos esse semideus.
O resto do tempo de Brask era tomado pela defesa contra Qorg, que era simplesmente um belo de um babaca. Estando do lado de dentro do cerco, eu percebi que Qorg era o pior tipo de oponente que se poderia ter. A cada tantos dias ele se sentava em uma catapulta, se lançava por cima das muralhas, chacinava tantos soldados quanto ele conseguisse até que ou ele se cansasse ou que Brask se envolvesse no combate, e então ele simplesmente fugia de volta pulando para fora das muralhas, mergulhando no fosso, e retornando ao seu acampamento para dar uma chance aos seus ferimentos frescos de se curarem.
Lá pela quinta vez que Qorg fez isso, eu percebi que ele estava realmente só brincando e se divertindo, tentando estender essa última batalha contra seu rival o máximo que ele conseguia. Eu frequentemente pensava no porquê de Pleth simplesmente não invadir o castelo com animais e árvores móveis, mas não tanto quanto pensava sobre o que raios Handelhan estaria fazendo durante isso tudo.
Com seus estoques de comida se esgotando muito mais rápido do que ele antecipara, Brask foi posto a encarar uma dura decisão no final do terceiro mês. Juntando os seus últimos soldados remanescentes, Brask decidiu fazer uma tentativa de quebrar a linha de cerco, mesmo que isso significasse deixar todos os outros habitantes do castelo, incluindo eu, à própria sorte. Embora fosse provavel que os homens fossem todos mortos, e as mulheres, estupradas ou pior, foi difícil para nós odiarmos o homem, ao passo que Brask fez um comovente discurso explicando suas razões, e como foi difícil chegar a essa decisão.
Assim que Brask e seus soldados cavalgaram para fora, eu ajudei o restante dos homens a juntarem as mulheres e se enfiarem todos na parte mais interna do castelo. Havia uma quantidade incrível de choro, das mulheres e dos homens. Eu conseguia praticamente sentir o quão forte eram seus desejos de viver. Eu sabia que o melhor que eu poderia fazer era chegar a Qorg o mais rápido possível, e fazê-lo impedir seu exército de saquear o castelo, mas isso tudo dependeria de Qorg sobreviver o seu embate com Brask.
Qorg permitira seus homens a deixar a linha de cerco se afinar, então Brask pode facilmente quebrá-la. Ele e seus homens provavelmente conseguiriam escapar, caso Pleth não tivesse ordenado os cavalos a dar meia volta. Foi um tanto lamentável, os homens de Brask berrando a suas montarias, as quais se recusavam a ouvir, não importando o quão forte eles chutassem seus flancos. Com os cavalos feridos e ensanguentados no momento em que eles cavalgaram de volta ao centro do exército de Qorg, os soldados montados neles imploraram ao seu comandante que se rendessem. Brask, em um sinal de completa rendição, jogou ao chão sua lança e espada, tudo que naquela hora o separava de um homem comum.
Qorg estava de bom humor, e ofereceu a Brask o direito de duelar pelas vidas de seus homens. Brask concordou com um duelo à alvorada, o que me deu tempo suficiente para me esgueirar até o acampamento de Qorg. Tivemos um belo banquete naquela noite, celebrando a nossa vitória e reunião. Pleth se recusou a fazer parte dos festejos, já que ele alegava que ainda não tínhamos vencido, mas Qorg se banqueteou, festejou e bebeu até de manhã.
Capítulo 4 - A Dança da Guerra
O duelo começou sem qualquer cerimônia. Um anel de homens cercou Brask e Qorg, e então eles simplesmente se atacaram. Qorg não mostrava nenhum sinal de fadiga por ter festejado a noite toda, e atacou Brask com uma imensa clava feita de ferro. Apesar da ferocidade dele, Brask conseguiu acompanhar a velocidade incrível da clava, se esquivando de cada golpe e acertando vários de volta com a sua espada.
Quando Qorg finalmente o atingira, com um golpe pavoroso que esmagou a ombreira esquerda de Brask, despedaçou seu ombro, mutilou seu braço e o afundou uns centímetros para dentro do chão, já era tarde demais. Brask aguentou o ataque e então perfurou Qorg várias vezes, o abatendo.
Foi um resultado indesejado, mas não inesperado. Conforme Qorg morria deitado, gritando obscenidades, nós assistimos como Brask e seus homens montaram em seus cavalos e cavalgaram para longe, sem nenhum dos homens de Qorg se incomodar em perseguí-los.
Pleth esperou até que o grupo de Brask estivesse cavalgando próximo a uma ravina antes de compelir o cavalo a derrubá-lo, um fim de certa forma cruel para um homem que havia aguentado tanta coisa. O restante dos cavaleiros de Brask tentou parar seus cavalos, mas eles continuaram passando direto por seu líder. Embora alguns homens tenham conseguido pular para fora de suas selas, eles não conseguiram alcançar Brask antes dos leões da montanha, que arrastaram seu corpo quebrado de volta até Pleth.
O semideus estava praticamente morto. De fato, tentamos muito mais arduamente salvar a vida de Brask do que a de Qorg. Felizmente Handelhan apareceu, e conseguiu colocar Brask em um estado de coma induzido. Ele também nos explicou quantas coisas novas ele conseguiu aprender graças à sua nova habilidade de leitura acelerada, e como ele havia conseguido unir ambos seus poderes, lendo as mentes das pessoas até os aspectos mais profundos em meros segundos. Tendo passado um bom tempo lendo as mentes das pessoas mais brilhantes na sua academia, pelos seus cálculos, ele havia se tornado a pessoa mais esperta do mundo.
Enquanto Handelhan levava o corpo destroçado de Brask de volta à nossa Cidadela, Pleth e eu tentamos restaurar algum senso de ordem ao exército de Qorg. Sem a liderança desse nosso aliado, as tropas foram reduzidas a meramente um grupo enorme de bandidos, e para a minha consternação, eles não só saquearam o castelo, mas começaram a aterrorizar o campo.
Pleth acabou por eventualmente conseguir encurralá-los com seus poderes, e até conseguiu que uma boa maioria deles se convertesse ao culto da Árvore-de-um-olho, embora isso pouco tenha ajudado a aliviar os sentimentos amargos dentro de mim. Passei tempo demais dentre os mortais. Eu sabia. E era difícil de me esquecer dos rostos dos homens e mulheres chorando enquanto se amontoavam escondidos no fundo do castelo, com seus destinos completamente fora de seu controle.
Quando Qorg, ressuscitado e irado, retornou, ele somente ficou por alguns dias na Cidadela antes de sair cavalgando em direção a qualquer guerra novamente. Demorou vários meses até o seu retorno, e por conta disso, Handelhan tinha notícias ruins para lhe passar.
Brask havia perecido uns poucos dias antes de Qorg retornar. Embora Handelhan tenha feito tudo ao seu alcance para preservar a vida dele, no fim ele foi forçado a extrair a divindade de Brask para evitar que ele ressuscitasse nos Salões dos Imortais. Não querendo desperdiçar algo que deu tanto trabalho para conseguir, Handelhan acabou por tomar a divindade de Brask ele mesmo.
A história era plausível o suficiente, mas a alteração no equilíbrio de poder foi dramática. Qorg estava contando com as habilidades de Brask para aumentar seu próprio poderio, mas agora ele foi forçado a se contentar com a ideia de que Handelhan agora poderia ter a vantagem em um combate singular. Qorg não expressou sua fúria, mas duvido que Handelhan tivesse precisado ler a mente dele para saber o que por lá se passave.
Seu único consolo veio na forma de Pleth, com quem ele ainda podia contar que era mais forte que Handelhan, e poderia mantê-lo na linha se necessário. Mas, com Pleth sempre ocupado gerenciando seu culto e perambulando pelo mundo, Qorg se sentiu vulnerável demais na nossa própria fortaleza. Sem perder tempo, ele começou a planejar a nossa próxima captura: uma mulher da qual ele ouvira falar em rumores, conhecida como a rainha dos arqueiros, que, caso os contos que a rodeavam tivessem uma gota de verdade, era com certeza uma semideusa.
Eu me juntei a Qorg e seguimos viagem para o distante sul. Aqui os deuses que servíamos tinham outros nomes aos quais estávamos acostumados, mas ainda assim, o Deus da Guerra era o Deus da Guerra. Ao caçar rumores dessa rainha dos arqueiros, eu aprendi o útil truque de direcionar o forte desejo das pessoas de não ser morto por Qorg para um desejo de nos contar tudo que sabiam. Ainda assim, levou meses até a encontrar, morando dentre um grande bando de guerreiros-sacerdotes.
Ceret era de fato uma semideusa, portadora da terrível habilidade de jamais errar com seu arco. Após observá-la devastando um grupo de bandidos atirando de uma montanha distante, Qorg decidiu que seria melhor tentar fazer amizade com a mulher. Me surpreendi com essa reação, já que Qorg seria a última pessoa que eu imaginaria evitando uma batalha, mas conforme nós nos misturamos no grupo de guerreiros-sacerdotes, eu percebi que esse era precisamente o tipo de pessoas pelas quais Qorg mais prezava.
Após conhecer Ceret, eu a achei bem amigável. Qorg, por sua vez, estava praticamente apaixonado por ela. Ela era ousada e bela (como a maioria dos seres divinos costuma ser), e podia atirar quatro flechas de seu arco, acertando simultaneamente os corações de homens vindos dos quatro pontos cardeais. Completamente devotada ao Deus da Guerra, eu me pegava imaginando frequentemente o que ela pensaria se soubesse que Qorg estava tentando destroná-lo.
Passamos vários anos simplesmente acompanhando o seu bando, com Qorg suprimindo sua força a níveis mortais (mas ainda assim léguas mais forte que eu). Foi um período estranho, pois eu não acho que tínhamos qualquer tipo de plano. Qorg simplesmente fazia tudo o que queria. Uma parte de mim pensou que talvez ele ainda estivesse remoendo a mágoa de perder para seu rival em seu último encontro. E por mim, eu estava mais que disposto a dá-lo o tempo que fosse necessário para ele se reencontrar.
Encontramos alguns problemas na forma de um semideus, servo do Deus da Natureza, que gozava de maestria sobre o fogo e as chamas. Seus sacerdotes e os seguidores de Ceret entraram em conflito, o que resultou em uma desastrosa batalha. As flechas de Ceret se tornavam cinzas ao se aproximar dele, e com Qorg ainda teimosamente tentando esconder a sua divindade, tive eu que fazer alguma coisa. No fim, eu cavalguei em frente, com meu orgulho gravemente excedendo minhas habilidades, e fui queimado até virar carvão.
Capítulo 5 - Reuniões e Separações
Ao despertar nos Salões dos Imortais, percebi que havia muitos séculos que não voltava para lá. Me senti compelido a perambular pelos corredores impecáveis, e somente quando cheguei aos Jardins do Desejo que entendi o porquê dessa vontade de perambular ter me dominado.
O Deus do Desejo não queria se aproximar de mim, ele queria que eu me aproximasse dele. Embora fosse uma divindade comparativamente fraca quando colocado dentre os outros Deuses Maiores, a diferença entre mim e ele era maior que a diferença entre um rei e um rato que habita os esgotos. Meu deus queria saber como eu estava promovendo o desejo pelas terras, e eu só pude responder que eu estava impedindo o povo de atingir a verdadeira satisfação.
Ele me ofereceu alguns conselhos, principalmente que negar às pessoas a satisfação por muito tempo iria simplesmente matar seus desejos, mas que, ao mesmo tempo, dar satisfação demais poderia impedir seus desejos de crescerem mais e mais. Desejos fortes demais, ele avisou, iriam levar as pessoas à ruína na maioria das vezes. No final, agradeci ao meu deus, e fui deixado sozinho a pensar sobre o quanto ele sabia sobre os meus verdadeiros desejos.
Quando retornei ao mundo mortal, eu decidi que seria melhor deixar Qorg sozinho e passar um tempo com Handelhan. Principalmente porque eu não poderia simplesmente reaparecer dos mortos sem destruir toda a tentativa de se fingir porcamente de mortal, mas também porque Handelhan estava passando muito tempo sozinho.
Lá, ele me pediu para torcer os desejos de várias pessoas em sua biblioteca e academia, e também me permitiu observar alguns de seus experimentos. Alguns desses eram executados nele mesmo, como ele estava tentando achar uma maneira de remover somente uma porção da divindade de um semideus, ao invés de tudo, parcialmente para conseguir potencialmente transferir o poder de Brask para Qorg.
Mas o seu objetivo mais urgente era uma tentativa de aumentar o tempo de vida dos mortais. Enquanto ele trabalhava dentre os pesquisadores, eu descobri que Handelhan havia, na realidade, conseguido uma esposa mortal uma década atrás. Quando perguntei a Handelhan sobre ela, ele me disse que eu, mais que nenhum de nossos amigos, deveria entender o quão forte pode ser um desejo, e que ele havia se deslumbrado com uma pesquisadora após ler a sua mente e ficar perdidamente apaixonado por ela.
Ele não mencionou, mas o fato de que ela era realmente bonita também pode ter contribuído.
Embora ela ainda fosse relativamente jovem, levaria somente algumas décadas até que sua vida terminasse, coisa que Handelhan não iria permitir que acontecesse.
Sem nenhum semideus capturado sobrando, Handelhan estava mais que disposto a dar uma porção de sua divindade à sua esposa, mas os obstáculos que ele estava encarando eram altos demais. Ele não só precisaria dividir sua divindade em duas partes, mas também precisaria implantá-la em uma mortal, algo que nem tínhamos certeza de que era possível. Em teoria, havia uma chance de funcionar, mas as complicações possíveis eram tantas que eu estava relutante em tentar sem ter a certeza do que faríamos.
Mas Handelhan estava trabalhando com um prazo limite bem restrito, com sua esposa envelhecendo. Após o auxiliar com os seus experimentos, ele me pediu para conseguir que Qorg ou Pleth capturassem um semideus o mais rápido possível, para que ele, por fim, pudesse tentar transferir seu poder para sua esposa. Assim que saí para me juntar a Pleth, ele mencionou casualmente que preferia que o nosso alvo fosse um servo do desejo.
Pleth e o culto da Árvore-de-um-olho estavam construindo um templo um tanto grandioso quando me encontrei com ele. Depois que contei sobre a esposa de Handelhan, a qual Pleth nomeou caridosamente de tolice de Handelhan, eu fiz o meu melhor para persuadi-lo a ajudá-lo nesse desafio. Mesmo que Pleth tenha argumentado que a morte de um mortal fosse tão natural quanto a sua vida e que conceder divindade iria ser um ato contra a natureza, eu o intimidei levemente, dizendo que nós todos devíamos a Handelhan por todos os seus anos de trabalho duro.
Depois de nos adornarmos com as vestes puídas de peregrinos, deixamos a construção do templo nas mãos de um jovem, porém brilhante, arquiteto, que nos prometeu que o terminaria em trinta anos. Deixando revoadas de aves de rapina e bandos de feras sedentas de sangue cercando o templo como seus guardiões, nós partimos de viagem para nos encontrarmos com Qorg.
Ficamos com os ouvidos abertos por rumores pelo caminho, prestando atenção em tudo que poderia nos levar a um semideus do desejo. Após ouvir a nossa cota de contos estapafúrdios, cheguei à conclusão de que, a não ser que tenha um semideus do desejo em cada bordel do mundo, nós precisaríamos mudar a nossa linha de interrogatório.
Qorg estava bem melhor do que da última vez que o vira. Mesmo que ele não tenha conseguido matar o semideus controlador de fogo, minha corrida suicida deu aos seguidores de Ceret um momento de relento das chamas, permitindo que escapassem. E deu também a Qorg e Ceret algo para lamentarem juntos, embora Qorg tenha se desculpado por chorar lágrimas de crocodilo em meu nome. De qualquer maneira, ele se tornara bem próximo de Ceret, mesmo sendo provável que ela estivesse começando a suspeitar de sua divindade.
Após me reintroduzir a Ceret como o irmão mais novo do meu antigo eu, ela teve tato o suficiente para não questionar. Pleth, de imediato, confessou seu amor por ela, o que fez com que Qorg quebrasse a jarra de barro de onde ele bebia. Por sorte, Ceret reconheceu prontamente a piada pelo que ela era.
Qorg ouviu atentamente enquanto eu lhe contava sobre o apuro de Handelhan, que fez com que ele também chamasse-a de tolice de Handelhan. Ele disse que isso iria atrapalhar todos os nossos planos, e inclusive poderia resultar em alguma catástrofe terrível. Mesmo assim, ele concordou em ajudar e se separou da companhia de Ceret.
Para a nossa surpresa, não demorou para que o próprio Handelhan se juntasse ao grupo. Não pudemos deixar de celebrar espalhafatosamente a nossa reunião em uma vila próxima. Quando nos recuperamos dos festejos no dia seguinte, Handelhan nos explicou seu plano, do qual eu já não gostara desde o começo, mas não soei meus comentários até ele terminar.
Para capturar um semideus do desejo, ele queria que eu estimulasse o desejo pelas terras, forçando-o nas mentes e vidas das pessoas. Ele pretendia que a adoração do desejo crescesse até se tornar selvagem e à vista de todos, e é quando os semideuses do desejo iriam emergir com orgulho. Ele desejava isso feito rápido.
Eu estava para perguntar como exatamente ele propunha que eu fizesse isso, mas ele já tinha uma resposta preparada. A minha tarefa, ele explicou, seria convencer as pessoas de que elas poderiam satisfazer seu anseio por amor com sexo.
Eu não tinha certeza se queria discutir com Handelhan, já que ele tinha plena certeza de que seu plano funcionaria, mas também explicou que naturalmente haveria algum tipo de oposição. Ele queria que eu poupasse os seguidores da Árvore-de-um-olho, pois eles serviriam como um ponto de encontro de dissidentes. Com os seguidores de Pleth sob a sua orientação e Qorg me protegendo conforme cavalgávamos pelos vilarejos e aldeias, Handelhan iria espalhar uma rede de informantes para coletar as informações sobre o progresso do plano além de quaisquer potenciais semideuses.
Era um plano inusitado, mas ambos Pleth e Qorg estavam curiosos para ver no que iria dar. Tendo o prazo de uma década, eles sentiram que valia a pena passar esse curto período se dedicando ao plano de Handelhan, e se esse falhasse, seu arquiteto seria o único responsável por sua falha.
Então, eu comecei a minha cavalgada pela primeira aldeia, coberto por uma capa vermelha. Pleth me deu certeza de que não havia nenhum dos seus seguidores por lá, então usei meu poder em todos que se aproximaram. Não houve nenhum efeito aparente e quando eu saí da aldeia, eu parti sem ver nada do meu poder funcionando.
Na próxima aldeia, vestido com uma capa verde, eu comecei meus trabalhos novamente. Era uma tarefa estranha, pois eu mesmo não tinha plena noção do que eu estava fazendo. Ao menos era bem simples de fazer, já que era muito fácil convencer que sexo era prova de amor e que conseguir transar era o mesmo que amar, mas o que isso faria para avançar os planos de Handelhan, eu já não tinha ideia.
No sexto vilarejo, dessa vez sob um manto azul, eu comecei a ouvir rumores. Certamente era porque eu estava procurando por coisas assim, mas as donas de casa que pairavam em esquinas pareciam ter muito o que fofocar.
Cavalguei pelos campos, com Qorg e caos no meu rastro, e lá pelo fim do primeiro ano, Handelhan disse ter informações animadoras a oferecer. Na parte do mundo por onde passei primeiro, a contagem de nascimentos explodira e os bordéis estavam tendo lucros imensos, um sinal claro de que as pessoas estavam fazendo mais sexo. Quando perguntei o que isso tudo significava, ele simplesmente me disse para continuar com o bom trabalho, pois os resultados desejados não iriam florescer até por volta do quinto ano.
E então cavalguei. Nunca passei mais que uns poucos dias em cada vila e aldeia visitada. Usei meus poderes em pedintes, soldados, padeiros, cavaleiros, lordes, mercadores, leiteiras, poetas e estudiosos, em quem tivesse a má sorte de cruzar o meu caminho. No fim do quinto ano, eu não precisei de Handelhan para me explicar o que estava acontecendo.
Eu tinha gravemente subestimado o desejo das pessoas por amor. Para alguns, mais que comida, mais que água, mais até que ar, essas pessoas desejavam o amor. Vê-los buscar o sexo quando eles desesperadamente queriam amor estava se provando um belo terror. Os sortudos foram os que conseguiram encontrar o amor entre tanto sexo, mas dentre esses estavam os mais azarados, aqueles que encontraram o amor em seus parceiros, mas estes não o correspondiam. A maioria simplesmente festejava seus desejos carnais, nunca conseguindo preencher a lacuna em seus corações que era o seu verdadeiro desejo.
Pessoas que nunca quiseram o amor desde o início se tornaram reis de um olho dentre cegos, plenamente satisfeitos, enquanto lideravam o restante a seguir em seus passos. Num piscar de olhos, o desejo sem fim por sexo (que, na verdade era a fome insaciável por amor) consumira a cultura, levando os adoradores do Desejo a encontrar muitos novos convertidos.
No sétimo ano, Qorg e eu fomos atacados por bandidos. Isso não era inédito, mas costumeiramente uma pequena demonstração da força do meu companheiro era mais que o suficiente para botá-los para correr. Não dessa vez, esses bandidos atacavam com fervor ensandecido, ignorando Qorg e vindo diretamente a mim.
Foi só naquele momento que percebi o motivo de Qorg ter suprimido a sua força enquanto estava com os seguidores de Ceret. Durante aqueles anos, ele aprendeu a lutar sem depender da força bruta, como demonstrado brilhantemente naquele dia. Os bandidos foram despedaçados com pouca interferência minha, mas mesmo assim eles continuavam a avançar imprudentemente, tentando passar por Qorg. Assim que uma seta de besta atingiu a minha coxa, eu percebi ser a nossa vez de fugir de uma batalha, mas nesse momento já era tarde. Como eu estava sendo alvejado de setas, demorei para perceber a estranheza de tudo.
Capítulo 6 - Desejo em Chamas
Nos sagrados Salões dos Imortais, eu tive repentinamente a vontade de correr até os Jardins do Desejo, e percebi que isso tudo se tratava de uma convocatória menos que sutil do Deus do Desejo. Eu nem me incomodei em tentar resistir àquela vontade, mas pelo menos tive orgulho o suficiente para marchar até lá, ao invés de ir saltitando.
Conforme eu me aproximei dos Jardins, no entanto, meu medo me levou a saltitar. Eu estava praticamente eufórico quando cheguei à presença do meu deus. Para a minha surpresa, após se desculpar pela convocatória um tanto rude, ele queria me elogiar pelos meus esforços. Quando ele percebeu o que exatamente estava acontecendo com as pessoas, ele soube na hora que devia ser eu que estava desviando os desejos das pessoas para perseguir o sexo quando queriam amor. Do dia para a noite, o seu número de seguidores havia dobrado, e, portanto, ele gostaria de recompensar minha esperteza com qualquer dádiva que eu desejasse.
Então, posso não ser particularmente esperto, mas eu conseguia ver um teste quando um se apresentava. Quando um Deus do Desejo lhe pergunta o que você quer, é o mesmo que o Deus da Guerra perguntar o quanto você gosta de guerrear. Ele estava tentando mensurar o meu desejo, que, para o meu azar, era bem incriminatório. Se eu dissesse a ele meu desejo real, tenho quase certeza de que ele não iria simplesmente entregar o seu posto e seu poder. Já se eu pedisse por muito pouco, isso iria ficar tão ruim quanto, o que causaria ele a suspeitar de um desejo mais profundo.
Conforme eu pesava as minhas opções, eu lembrei de todo o propósito original que me fez sair por aí mexendo na vida das pessoas. Pensando com cuidado, eu decidi que a melhor maneira de passar por essa situação seria dizer que eu queria um subalterno, um semideus subordinado. Eu inclusive diria que já tinha uma mortal em mente que seria uma ótima candidata a serva do Deus do Desejo. Por fim, o solicitei que concedesse um pouco da sua divindade e me permitisse guiá-la na sua adoração.
Meu deus ficou muito satisfeito com essa solicitação, já que ele pareceu pensar que o meu pedido era reflexo de um desejo de expandir o seu poder, e decidiu que ele iria concedê-lo, caso ele pensasse que a candidata fosse adequada. Felizmente, ele precisou de somente um rápido relance para julgá-la apropriada, e a concedeu a habilidade de fazer as pessoas sonharem com o que elas mais desejam. Como um toque final, ele a rebatizou de Cymdra, para refletir sua posição como minha aprendiz.
Eis que Cymdra nem sabia que Handelhan era um semideus, ou que deuses sequer existiam de verdade, o que tornou isso tudo em um grande choque. Eu não sabia o que poderia lhe contar, o que Handelhan escondeu dela, e se a minha ideia de improviso foi realmente boa ou não. Então, eu simplesmente lhe preparei uma xícara de chá, a fiz sentar e conversei sobre quão agradável estava o clima nos últimos dias.
Quando Handelhan ouviu o que eu fiz, ele ficou furioso. Tornar sua esposa em uma subordinada minha definitivamente não era parte do plano, e fazê-la se tornar uma serva dos nossos maiores inimigos, muito menos. Conforme Cymdra e eu tentávamos acalmá-lo, eu cometi o erro quase fatal de chamá-la pelo seu novo nome. Caso Pleth e Qorg não tivessem, por sorte, escolhido esse momento para fazer uma aparição, é provável que eu fosse me encontrar contando pedras na cela mais profunda de nossa Cidadela.
Depois de nós quatro termos conseguido acalmar Handelhan, eu pedi a Cymdra que nos deixasse por um momento, para que pudéssemos discutir o próximo passo dos nossos planos. Ambos, Pleth e Qorg concordavam que as coisas acabaram bem, já que o objetivo de Handelhan de tornar sua esposa imortal foi conquistado, e que podíamos parar com o plano, que muito provavelmente teria repercussões de longo prazo.
Mais tarde, Qorg veio me contar que o que fiz foi uma jogada brilhante, pois agora eu tinha sob meu poder a única coisa que Handelhan prezava. Considerando que isso significava que eu conquistara a ira de um mestre de armas imortal e hiper inteligente que tinha a capacidade de roubar a essência divina de outros seres… Eu não achei essa jogada assim tão brilhante.
Embora o objetivo de Handelhan tenha se cumprido, seu plano ainda estava em plena execução. Lá pelo oitavo ano, sua rede de informantes havia percebido a ascensão de uma poderosa semideusa do desejo, que juntava seguidores sob o nome de a Dama da Meia-Noite. Sem querer desperdiçar o que seu plano trouxera, Handelhan decidiu que seria melhor que capturássemos essa Dama e absorvêssemos seu poder.
Sem termos razões para reclamar, os quatro de nós saímos em viagem, deixando Cymdra para trás, tomando conta da nossa Cidadela. Eu cheguei a falar com Handelhan sobre contar tudo a ela, incluindo o nosso objetivo principal e os métodos que estávamos usando para atingi-lo, mas ele era o marido e eu meramente o tutor, então a decisão dele foi a que valeu.
Chegando à cidade onde se dizia que a Dama da Meia-Noite morava, eu percebi que, embora eu tenha meramente acendido uma faísca, foram com certeza os outros semideuses que haviam alimentado as chamas. Coberta de preto, a cidade era um carnaval de devassidão e desejo, um templo gigante dedicado aos aspectos mais negativos do meu deus. Tudo que era sagrado era tudo que não era. Imagens de rituais carnais vieram pela nossa volta através de véus negros e cortinas que revoavam com a brisa. Pleth, que passou incontáveis anos aconselhando seus seguidores a respeitarem a divisão entre amor e sexo, ficou claramente enojado com essas cenas
Julgando pela ferocidade que vimos, definitivamente não foi um poder comum que impulsionou esses adoradores, o que me fez suspeitar dos imensos braseiros que cobriam a cidade com o cheiro de incenso. Sendo semideuses, éramos imunes a qualquer poder de encantamento que ele poderia carregar, mas ainda assim o cheiro forte parecia ter um poder próprio.
Éramos frequentemente parados no nosso caminho até a Dama, mas nem Qorg, nem Handelhan tiveram qualquer razão para atrasar o nosso encontro. Trespassando qualquer um que parasse na nossa frente, Handelhan somente desacelerava o passo por tempo o suficiente para ler a mente das pessoas, com o fim de descobrir onde a tal Dama estava, antes de completar seus golpes. Talvez tenha sido a fumaça que enevoava a minha mente, mas eu não me incomodei em recomendar uma aproximação mais sutil.
A encontramos tentando escapar a cavalo, mas Pleth fez com que esse plano não tivesse efeito. Uma vez jogada ao chão, ela começou a nos interrogar, tentando descobrir por que estávamos atrás dela. Quando ela não obteve resposta, ela despiu seu vestido e tentou negociar um acordo conosco. Pensando agora, um de nós deveria ter dito alguma coisa, qualquer coisa, nem que fosse só para conseguir se aproximar mais um pouco e nocauteá-la.
Mas, nos mantivemos em silêncio, e ela decidiu fazer algo que nos esquecemos completamente de que ela podia fazer.
Ela saltou para trás, adentro do imenso braseiro às suas costas. Seu cabelo e corpos oleados foram imediatamente engolidos por chamas. Nós todos corremos à frente, tentando todo o possível para apagar esse fogo, mas mesmo depois que Qorg enterrara suas mãos no solo e começou a rapidamente arremessar quantidades massivas de terra sobre ela, era tarde demais.
Entramos em pânico.
Ninguém sabia o que fazer, ou o que iria acontecer. Ela vira os quatro claramente, e certamente iria adivinhar que eramos semideuses, já que seu incenso não surtia efeito sobre nós. Ela não tinha como saber qual dos deuses servíamos, embora fosse provável que ela achasse que servíamos o Deus da Guerra, considerando que estávamos todos cobertos de sangue.
Se eu fosse ela, eu iria apressadamente até o Deus do Desejo, lhe contaria que algo estava errado, e tentaria começar algum tipo de investigação. Eu não tinha ideia de quanto tempo se demorava para acordar lá depois de ter morrido, especialmente porque o tempo não era exatamente algo rigoroso nos Salões dos Imortais, mas de qualquer jeito, sair da cidade era definitivamente a nossa prioridade.
Já Handelhan pensava diferente. Ele desembainhou sua espada e, antes que eu tivesse chance de protestar, me decapitou por completo.
Capítulo 7 - Entre Deuses e Monstros
Os Salões dos Imortais eram um belo lugar, mas é um lugar do qual pode se enjoar de ver. Assim que acordei, não pude deixar de me sentir bravo. Ele claramente me mandara para lá como algum tipo de controle de danos, mas o que eu deveria dizer ao meu deus era um total e completo mistério para mim. I realmente duvidava que ele seria convencido por uma história do tipo “não é o que parece!” Naquele ponto, minha cabeça só tinha uma ideia, que era descobrir o que a Dama contava ao meu deus.
Quando cheguei aos Jardins do Desejo, eu tentei me misturar no meio da folhagem, me rastejando lenta e discretamente em direção à sala de audiências do Deus do Desejo. Ele não estava reclinado relaxadamente como era de costume em seu enorme divã, ele estava sentado, atento e em alerta, conforme a Dama da Meia-Noite concluía o seu relato.
Ele não estava satisfeito. Pelo que consegui captar, ele reconheceu a minha descrição (por que raios eu não usei uma máscara?!), embora ele não soubesse sobre os meus co-conspiradores. Suas identidades pouco importavam, no entanto, já que os Deuses Maiores iriam reconhecer seus servos, embora o Deus do Desejo não estivesse certo de que valia a pena importuná-los com isso.
Havia várias razões possíveis do porquê da Dama da Meia-Noite ter sido atacada, o deus estava pensando alto para a minha sorte, já que ele mesmo estava me fornecendo várias desculpas perfeitamente razoáveis. Ele nem tinha certeza de que o objetivo era realmente a matar, afinal, como uma semideusa, ela não morreria de verdade.
Mas, como a Dama era uma serva do desejo, ela reconheceu o meu desejo por sangue pelo que era. Ela praticamente gritava ao nos condenar, dizendo que os nossos olhos não mentiam e que buscávamos a sua verdadeira morte. O Deus do Desejo a olhou incrédulo, já que o pensamento de meros semideuses terem o poder de matar seres divinos era quase risível, mas ele disse para não se preocupar. Se eu realmente tivesse esse poder, ele iria descobrir no nosso próximo encontro, usando um de seus dons divinos para enxergar todos os meus planos e objetivos.
Meus planos de retornar ao status quo morreram naquele momento, já que eu duvidava poder fazer qualquer coisa que pudesse escapar das habilidades do meu deus. A próxima vez que nos encontrássemos, nossas intenções seriam conhecidas, e caso eu evitasse esse encontro, o resultado seria o mesmo. Mas conforme eu me despedia dos meus dias de subterfúgio, eu vi uma pequena chance se abrindo à minha frente.
Se eu completa e honestamente me arrependesse naquele momento, matasse o meu desejo de poder e o trocasse por desejo genuíno de servir o meu deus, eu poderia me poupar, ao custo de condenar os meus colegas conspiradores. Mas a noção de que eu poderia simplesmente apagar um desejo que alimentei por séculos só porque era conveniente no momento passou tão rápido quanto veio, e eu soube que meu próximo passo seria escapar dos Salões dos Imortais.
Mas, enquanto eu esperava por uma chance de escapar, eu senti a compulsão mais forte de toda minha vida. Era um comando que eu reconhecia, aquele que me compelia a ir até os Jardins do Desejo, mas em uma magnitude que não deixava espaço no meu coração para mais nada além disso. Meu deus me queria em seus Jardins, e a única coisa que me salvou foi o fato de eu já estar lá.
O Deus do Desejo continuava a impor pressão sobre mim, enquanto falava casualmente para a Dama da Meia-Noite que ele havia me convocado e que eu iria até cometer suicídio para chegar a ele. Seus servos estavam a postos para me capturar assim que eu adentrasse os Salões dos Imortais, anunciando a minha chegada. Eles teriam então somente que esperar que eu surgisse ali, e então tudo seria revelado.
Eles esperaram e esperaram, quando percebi algo que chega a ser engraçado. Meu deus havia substituído todo o desejo dentro de mim por um propósito singular. Um que já estava realizado. Eu estava gozando do contentamento infinito durante um momento no qual eu deveria temer pela minha existência, satisfeito além de tudo que achava possível. Se alguma vez cheguei a me aproximar da esclarecimento, foi com certeza nesse momento, plenamente satisfeito nos Jardins do Desejo.
Enquanto eu estava sentado em profunda meditação por entre os galhos e folhas de samambaia, o Deus do Desejo se provou não ter amor pela paciência. Ele me comandava e exigia a chegar aos Jardins do Desejo com ainda mais fervor, mas mesmo em um local onde o significado do tempo fluia flexivelmente, minha ausência prolongada tornou bem claro que eu não viria.
Eu frequentemente me questionava sobre a natureza da divindade do meu deus. Eu sabia que ele era incrivelmente poderoso, mas eu não sabia quanto de natureza “humana” havia nele. Eu jamais tinha presenciado ele apresentando emoções senão prazer, desprezo e raiva, as emoções esperadas de um deus, mas naquele momento eu vi uma nova emoção nele.
Ele estava com medo.
Ele havia investido todo seu poder em me trazer até ele, e de algum jeito eu consegui resistir. Mesmo isso não sendo nem um pouco verdade, aos seus olhos eu era um ser com poderes os quais ele não compreendia, e o pensamento de que eu poderia resistir aos desejos do Deus do Desejo o preocupou muito.
Sem uma só palavra deixada para a chocada Dama, que não conseguia entender a expressão no rosto de seu senhor, o Deus do Desejo deixou seus Jardins para se aconselhar com os outros Deuses Maiores.
Reconhecendo a melhor chance que eu jamais teria, eu deixei os Jardins para trás também, e corri pelos Salões, deixando-os me guiar para onde eu precisava ir. Assim que apareci na Cidadela esculpida no topo de nossa montanha, eu tive meros momentos antes de estar cercado por meus três co-conspiradores.
Eles me bombardearam com perguntas, mas o sentimento de completa satisfação ainda não havia me deixado. Eu ignorei suas perguntas e simplesmente comecei a recontar o que havia acontecido após eu ter morrido. Quando terminei, percebi uma coisa pela qual eu deveria estar zangado, mas que eu estava satisfeito demais para me incomodar no momento.
Perguntei o porquê de Handelhan ter me matado, e o que ele achava que isso teria desencadeado. Ele respondeu depois de um tempo, me dizendo que estar nos Salões dos Imortais frequentemente oferecia oportunidades a um semideus quando ele não teria nenhuma em outros lugares. A outra razão, ele disse com hesitação, foi que caso eu tenha ido sozinho até lá em cima, eu poderia ter levado toda a culpa, e, portanto, seria o único punido. Eu ouvi ambas as razões e simplesmente sorri, satisfeito demais para ficar com raiva. Conforme os três se juntaram para discutir os próximos passos, eu saí andando para conversar com Cymdra.
Quando Handelhan nos encontrou uma hora mais tarde, e percebeu que eu havia contado tudo a ela, ele teria me mandado novamente de volta aos Salões dos Imortais se Qorg não tivesse conseguido o segurar por trás. Eu ainda estava satisfeito demais para levar seu olhar de ódio a sério, e nem mesmo consegui enxergar realmente o olhar de horror de Cymdra ao tentar compreender tudo que o seu marido fizera nesses últimos séculos. Foi só quando Qorg soltou Handelhan e me deu um soco na lateral da cabeça que meu falso senso de esclarecimento passou.
Nós tinhamos muito pouco tempo, eles explicaram. Eu tive sorte uma vez, mas da próxima vez que o Deus do Desejo me quisesse nos Salões, eu não teria a menor chance de resistir. Como eu estava agora, eu não passava de um imenso fardo, só esperando ser convocado para ter me abrir perante o meu deus, em mais de um sentido.
Pleth, Qorg e Handelhan, por não serem servos do desejo, não estavam sob uma ameaça tão imediata, já Cymdra, graças a mim, estava quase na mesma situação que eu.
Handelhan começou a explicar seu plano. Pleth tinha se dado muito bem nos últimos anos, e era provavelmente um dos semideuses da natureza mais poderosos. Embora ainda fosse cedo para desafiar o Deus da Natureza diretamente, ele podia certamente continuar por conta própria a juntar seguidores, mesmo que seu secto fosse considerado herético perante os outros adoradores da natureza. Com exércitos de árvores e feras sob seu comando, ele poderia perdurar e talvez até prosperar.
Qorg e Handelhan não tinham cultos próprios, mas a academia estava pronta para dar alguns estudiosos dispostos a adorar um novo Deus do Conhecimento. Qorg iria, então, proteger os seguidores de Handelhan, que iriam continuar a sua pesquisa.
Já eu, sendo uma calamidade esperando para acontecer, iria ser colocado para dormir. Enquanto sonhasse, eu estaria incapaz de responder às convocatórias do meu deus, e então, quando Handelhan conseguisse criar algum tipo de contramedidas contra os desejos do meu deus, ele me acordaria. Cymdra, amaldiçoada com o conhecimento e divindade que eu lhe impus, também teria que ser colocada para dormir.
Eles me selaram dentro da mais profunda câmara da nossa Cidadela, tão funda que as pedras das paredes eram quase quentes demais para se encostar. Handelhan me deu um frasco contendo algo que ele disse que me faria dormir até que eu ingerisse um composto similar, e disse também que, mesmo que nenhuma contramedida tenha sido encontrada, eu seria acordado em cem anos para me contarem dos seus avanços.
Cymdra viajaria com Handelhan, enclausurada em uma arca de ferro. Me desculpei com ela, dizendo que eu jamais pretendia que nada disso acontecesse dessa maneira, mas ela calmamente me agradeceu por contar toda a verdade. Assim que me deitei na cama de pedra desconfortavelmente quente, ela me prometeu sonhos agradáveis.
Capítulo 8 - A Queda do Conhecimento
Quando acordei, eu estava sozinho no escuro. Ainda selado na câmara, eu lutei contra a porta de pedra, com esperança de que uma década de pressão contra ela pudesse me trazer a liberdade. Sem necessidade de comida, água ou até mesmo ar, eu continuei a fazer pressão contra a porta, esperando que o tempo eventualmente me favorecesse.
Eu sabia que estava em constante perigo, já que não se sabia quando eu seria compelido a me matar para chegar aos Jardins do Desejo, mas meu tempo passado no escuro não era mais que uma singularidade de monotonia. Tive muito tempo para pensar, mas como cada pensamento se limitava a medos e dúvidas, preferi me concentrar na porta.
Várias eternidades depois, a porta foi empurrada para dentro, me jogando para trás. Conforme a luz foi preenchendo a minha câmara, eu vi Qorg de pé perante mim, com uma mistura de emoções em seu rosto. Quando ele perguntou o que estive fazendo, eu respondi honestamente. Tentando abrir a porta. E então a mistura de emoções se tornou uma simples e pura risada.
Quando ele terminou, sua expressão se tornou sombria e as notícias que ele transmitia não eram muito melhores. Já fazia trezentos anos desde que eu tinha sido posto para dormir, e havia uma razão para não terem me acordado antes.
No primeiro século, as coisas corriam conforme o nosso plano. Handelhan criou seu culto de estudiosos, enquanto Pleth reforçava seus adoradores em um pequeno império. A Árvore-de-um-olho tinha se tornado de um mero culto em uma religião plena, parcialmente devido às posições fortes de Pleth em relação à moralidade. Comparado com outras adorações da natureza, sua religião não compreendia um senso de neutralidade ou mentalidade de colocar a natureza em primeiro lugar, em seu lugar, eles se esforçavam para encorajar harmonia, se concentrando principalmente nos bons aspectos da natureza.
As pessoas estavam sendo atraídas ao seu grande tempo, concluído no centésimo aniversário de seu jovem arquiteto. Localizado bem no meio de uma floresta primitiva, era uma fortaleza natural, onde milhares de seguidores da Árvore-de-um-olho ofereciam sua adoração, e centenas de peregrinos chegavam diariamente.
No entanto, próximo da hora que era para eu ser acordado, os Deuses Maiores fizeram a sua jogada. Era uma manobra simples, algo quase elegante. Foi algo, suspeito eu, em que o Deus do Conhecimento passou um bom período preparando, lentamente, juntando todas as informações necessárias antes de agir.
Bem quando Qorg havia se ausentado, uma equipe de semideuses capturou a arca de Cymdra.
Handelhan, subjugado, e com sua esposa sob a posse do Deus do Desejo, os deuses lhe ofereceram uma escolha.
Quando Qorg retornou, Handelhan o atacou. Embora o semideus do conhecimento ainda tivesse as habilidades com armas de Brask, o semideus da guerra não era o mesmo que foi derrotado décadas atrás. Eles duelaram, mas Qorg não enxergou vitória em matar seu antigo aliado, e, antes que os outros semideuses viessem em auxílio de Handelhan, ele fugiu.
Desde então, Handelhan lutava contra Pleth e Qorg, e lá pelo fim do segundo século, ele se tornara o seu maior adversário. Cada jogada que faziam era contra-atacada, e sem a pesquisa de seu antigo aliado, eles não podiam conseguir novas armas para o combate. Felizmente, os Deuses Maiores haviam proibido Handelhan de fazer mais experimentos envolvendo divindade, então ele foi forçado a depender somente de sua extrema inteligência, perícia com armas, leitura de mentes e semideuses subordinados. Tudo isso com o apoio dos deuses.
Os seguidores de Pleth, intitulados de falsos crentes por todas as outras religiões, tiveram a maioria de seus membros morta ou forçadamente convertida. Rapidamente, sua religião foi reduzida a um pequeno culto, com seu templo se tornando pouco mais que uma ruína tomada pela vegetação.
Qorg vivia em fuga, escapando de semideuses da guerra. Embora ele tenha conseguido matar vários, eles não ficavam mortos, ao contrário dele, que uma única morte significaria sua captura nos Salões dos Imortais e sua execução de forma definitiva. Não parecia ter solução, mas ainda havia uma esperança, por mais que ínfima. Se ele pudesse chegar nas ruínas da Cidadela, talvez existisse algum remanescente dos experimentos de Handelhan, e talvez com isso, Qorg pudesse desvendar como tirar a divindade de outros semideuses.
Qorg se escondeu em sua caverna profunda por décadas, esperando o momento para agir. Ele, então, começou a cavar um túnel, usando nada mais que suas próprias mãos, e após muitos e muitos anos, e muitas centenas de quilômetros de escavação, ele emergiu não muito longe da nossa Cidadela.
Quando Qorg abriu a minha porta, ele ficou surpreso em me ver vivo. Handelhan, em um de seus embates, contou aos dois, sem qualquer tristeza, que, com a minha divindade tendo sido separada da do Deus do Desejo, eu não teria como me sustentar e pereceria. Embora ambos também tenham sido separados da divindade de seus deuses, Pleth tinha seu culto, e até Qorg juntara adoradores que admiravam a lenda de um guerreiro sem par e sua imensa clava de ferro. Mas até onde todos sabiam, eu deveria estar morto, sem uma única alma me oferecendo adoração.
Embora eu realmente não estivesse morto, eu também não me sentia exatamente vivo. Conforme Qorg explorava as masmorras da nossa fortaleza há muito abandonada, eu tentei lidar com tudo com o que ele havia me contado. O maior choque foi a traição de Handelhan, não no sentido dela ter acontecido, mas que ele pareceu esperar até que não existisse outra opção. Qorg estava certo em não confiar demais nele, mas eu também não me deixei esquecer o quanto avançamos graças a ele.
Mesmo a Cidadela tendo sido esvaziada por Handelhan e seus lacaios muitos anos antes, desfazendo completamente a Biblioteca dos Saberes dos Deuses até seu último livro, eles acabaram deixando para trás umas partes esquecidas das masmorras. Em uma câmara, oculta para todos, exceto Handelhan e Qorg que a escavou, encontramos um enorme caldeirão, junto de grandes frascos de vidro contendo uma mistura obscenamente vil. Ao juntar os papéis espalhados pelo laboratório, lentamente descobrimos o terrível processo que Handelhan usara para extrair divindade dos semideuses.
A gosma podre de dentro dos frascos era, conforme confessado nas notas, nada mais que a total e pura maldade destilada. O sangue de um semideus corrompido e distorcido em rituais impronunciáveis era tudo que era vil em forma líquida. Submergir um semideus em algo tão podre forçava a divindade para fora do corpo na forma de um líquido que boiava, que por sua vez podia ser decantada em um pequeno frasco, a ser bebido por aquele que receberia a divindade.
Conforme eu lia sobre os rituais usados para destilar o icor, eu fiquei horrorizado ao ponto de me perguntar se devíamos ou não o usar. Qorg compartilhava das minhas dúvidas, mas acabou por nos justificar ao dizer que os sacrifícios já haviam sido feitos, e que seria um desperdício não usar essa maldade destilada.
Qorg nunca foi o tipo de pessoa que eu considerasse inteligente. Ele prezava muito mais a força bruta do que a astúcia, mas havia assuntos sobre os quais ele sabia mais até que Handelhan. Estratégia militar era uma delas, embora ele raramente se importasse de usá-la, e conhecimento sobre armamentos eram outra. Qorg passou uma boa parte de um ano lendo os cadernos que Handelhan negligenciou em destruir, descobrindo maneiras de tornar o icor em uma arma.
Capítulo 9 - O Icor das Sombras
Durante esse ano, eu deixei a Cidadela, viajando em direção ao templo da Árvore-de-um-olho. Tentei me manter afastado de aldeias e cidades, mas pelas quais passei, muito havia mudado. Mortais haviam avançado sua tecnologia muito lentamente nesses trezentos anos, já a cultura havia mudado dramaticamente.
Templos dedicados à Dama da Meia-Noite eram comuns, e altares para outros semideuses que antigamente tinham que permanecer ocultos agora eram trazidos à luz do dia. Todos os vícios eram aplaudidos, e a adoração do desejo era mais forte que qualquer outra. Arautos não anunciavam nada além de preços de bordéis e datas de novas remessas de escravos, enquanto pedintes rezavam para que alguém nas ruas os comprasse.
Quando finalmente cheguei ao templo de Pleth, fiquei surpreso ao vê-lo mais velho. Eu sempre lembrei dele como um jovem, mesmo depois de ele ter aumentado seus poderes, eu pensava nele como um irmão mais novo. Mas agora, após perder tantos seguidores, e ter sido separado da divindade do Deus da Natureza, parece que agora o peso dos anos finalmente o alcançara.
O velho me abraçou, louvando o sol e o vento por eu ainda estar vivo. Como que isso era possível, ele não sabia, mas não foi algo que ele ficou remoendo. Conforme eu o contei sobre o que achamos na Cidadela, Pleth se manteve taciturno.
Quando terminei, ele me perguntou se era ou não para vivermos para sempre. Eu não soube como responder, e ele continuou, dizendo que havíamos vivido vidas longas e grandiosas, que fizemos muitas coisas maravilhosas e terríveis. Cada um viveu as vidas de mil homens, e talvez tenha sido só isso que tínhamos para fazer.
Pleth não queria usar o icor. Ele não queria mais lutar. Estava velho e cansado, e não queria mais descobrir o que aconteceria a um deus ruim quando ele realmente morresse.
Por respeito a ele, eu permiti as suas palavras ecoar na minha mente por um dia, tomando-as com a maior seriedade que consegui. Mas, no final, eu pedi a ele que cavalgasse comigo, que viajasse além de seu templo.
No primeiro vilarejo que vimos, eu fiz Pleth encarar de frente o que fizemos. Abusei do meu poder e encorajei que outros semideuses também o fizessem. Embora os seguidores de Pleth tivessem sofrido sob as mãos de outros, essas pessoas estavam sofrendo por conta de seus próprios atos e desejos, e se nada mais contasse, no mínimo era a nossa responsabilidade corrigir as coisas.
Pleth não precisou de mais convencimento. Conforme nos dirigimos de volta ao seu templo, as árvores próximas vibravam com a sua fúria. Me peguei pensando como foi que esqueci de que o Pleth sempre foi, de longe, o mais forte de nós.
Quando Qorg finalmente chegara ao templo, ele não veio sozinho. Um bando de guerreiros-sacerdotes dirigia grandes carroças floresta adentro, junto de uma semideusa bem familiar.
Ceret me cumprimentou pelo primeiro nome que ofereci a ela, e abraçou Pleth de uma forma que teria sido obscena, se não parecesse ridícula devido à idade avançada do semideus da natureza. A careta de Qorg não diminuiu quando todos caíram na gargalhada, mas se derreteu quando ela espertamente plantou um beijo na sua bochecha.
Conforme celebramos naquela noite, Ceret me contou o porquê de eu não ter morrido enquanto dormia. Demorou um pouco para contar a história inteira, já que ela era constantemente tomada por acessos de riso. Eu já não via onde estava a graça.
Os guerreiros-sacerdotes de Ceret recontaram a história da batalha contra o semideus controlador de chamas tantas vezes pelos séculos, que o meu papel nela havia crescido e expandido, ao ponto de alguns contadores de história jurarem que eu era, na verdade, o maior e mais fiel amante de Ceret. Ao batalhar pelo inferno vivo, eu mergulhei no fogo por puro amor, e batalhei adentro do coração das próprias chamas. Se ganhei ou não, depende do contador, mas a lenda de Cym, o devorador das chamas, se espalhou pelas terras do sul, perdurando até hoje.
Quando perguntei qual era a graça sobre isso tudo, Ceret respondeu que ela jamais poderia esquecer a expressão do grande devorador das chamas, logo após de eu ter corrido em frente e ser engolido pelo inferno, como se eu tivesse repentinamente lembrado que fogo era quente.
Qorg e Pleth riram demais disso, mas depois de um tempo, começamos a discutir se isso poderia significar uma mudança nos meus poderes. Como fui cortado do Deus do Desejo, e minha única adoração era por pular no fogo como um maluco, eles pensavam que talvez eu tenha obtido uma nova habilidade.
Vários dedos queimados e uma explosão de risos de todos, exceto eu, depois, essa noção se dissipou rapidamente.
Na manhã seguinte, não havia risos, já que Qorg revelara o conteúdo das carroças. Dentro, estavam invólucros de icor, junto de engenhocas horríveis que provavelmente foram projetadas pela mente militar de Qorg. Pleth e Ceret as encaravam com desprezo silencioso. Eu já não pude deixar de perceber que alguns dos aparatos se assemelhavam a grandes seringas.
Qorg explicou sua ideia simples. Handelhan aplicava o icor externamente, mas assim o fazia, pois seu objetivo principal era extrair a divindade com a intenção de infundi-la a outro. O nosso objetivo final, no entanto, era matar deuses.
Após Qorg e Ceret cavalgarem para fora no fim do dia, Pleth me perguntou o que eu pretendia fazer. Era algo que eu ficara remoendo desde o meu falso esclarecimento, e a ideia tinha somente crescido mais e mais desde aquele tempo.
Capítulo 10 - A Revolta dos Desejos
Com o meu poder, eu poderia fazer o oposto do que eu havia feito no passado. Eu queria mudar os desejos das pessoas para algo que as fosse satisfazer mais, e não menos.
Eu fui até a vila mais próxima, e procurei os pedintes que eram pobres o suficiente que eles desejavam que alguém os levasse como escravos. Eu não os ofereci esmolas, mas lentamente, cuidadosamente, eu os fiz desejar tomar as rédeas das sua próprias vidas, ao invés da escravidão.
Me senti culpado quando a sua rebelião foi esmagada sangrentamente, mas continuei o meu trabalho, fazendo cada prostituta querer respeito ao invés de dinheiro. Fui a cada um dos donos de loja, convencendo-os de que clientes felizes era mais importante que as suas margens de lucro, e aos jovens, lhes disse para buscar seus verdadeiros amores, ao invés de se contentar com sexo ou só conforto.
Ao sacerdote da Dama da Meia-Noite, sofri para pensar em alguma maneira de usar meus poderes. No final, acabei somente virando um braseiro, ateando fogo ao seu templo.
Não demorou muito até que eu tivesse sido expulsado da vila, mas quando todos os escravos repentinamente perceberam que fugir em direção à liberdade era menos importante que chacinar seus antigos mestres, aquele se tornou um belo ponto de encontro para juntar convertidos à Árvore-de-um-olho.
Era mais que tempo da bolha de desejo que eu havia criado estourar, e conforme viajei o mundo com Pleth como meu guardião, causamos revoltas e caos como nunca. Mortais não mais ouviam os sacerdotes do desejo, e começaram a decidir por si o que eles queriam. As pessoas não mais escolhiam a maneira mais fácil por inércia, e sim passaram a lutar para conquistar as coisas que elas mal percebiam que realmente queriam.
Pleth, como um senhor, se fez um ótimo pregador, especialmente quando as pessoas se davam conta do quanto desejavam ouvi-lo. Era como se pensassem que uma nova religião seria a melhor maneira de cumprir seu desejo profundo por ordem e moralidade.
Não demorou para que os deuses percebessem o que fazíamos. Eles passaram a mandar seus servos contra nós, mas a cada cidade que passamos, a adoração à Árvore-de-um-olho crescia, e com ela, os poderes de Pleth. Cavalos derrubavam seus cavaleiros, enquanto árvores os prendiam ao chão. Cada fuga se tornava mais fácil que a última.
Qorg e Ceret também se mantiveram ocupados. Quando eles voltaram ao restaurado Templo da Árvore-de-um-olho depois de incrivelmente longos três anos, eles tinham uma bela história a contar. Conforme nos banqueteamos, nos contaram de grandes batalhas contra outros semideuses da guerra, incluindo um que tinha o poder irritante de sempre levantar seu escudo na direção de qualquer coisa que viesse em sua direção.
Embora Ceret tenha atirado flecha atrás de flecha, até suas múltiplas aljavas terem se esgotado, e o escudo de 10 centímetros de espessura do semideus prender mil ou mais flechas, ele continuou a avançar na direção dela. Mesmo cercado de dez homens, ele continuava a bloquear golpe após golpe, e os derrotou um a um. Quando ele chegou finalmente a Ceret, certo de sua vitória, Qorg correu em frente e bateu com sua clava com tamanha força que o impacto soou como um sino, alto o suficiente para matar algumas pessoas próximas, ensurdecendo o restante.
Com o semideus caído no chão, Qorg forçou a agulha de um dos seus matadores-de-deuses por cima do escudo que ainda conseguia se levantar fracamente, apesar do braço do semideus parecer mais uma geléia presa dentro de um saco de pele. Qorg o espetou no crânio do semideus, e observou como a divindade vazou para fora do furo de seus olhos, nariz e ouvidos.
Houve vários desses contos, e tendo derrotado seis semideuses, absorvendo todos os seus poderes, tornaram-nos, provavelmente, nos semideuses da guera mais fortes de todos. E eles não retornaram sem presentes, nos presenteando, a cada um, com frascos de prata acorrentados.
Para Pleth, a essência de um semideus que controlava os ventos, derrotado quando Qorg cavou um túnel sobre ele e o puxou para baixo da terra.
Para mim, Ceret estava orgulhosa de poder me presentear com a essência do semideus que tinha me queimado vivo, séculos atrás. Mesmo sendo um poder do Deus da Natureza que iria tipicamente para Pleth, ela me pediu para completamente vestir o manto de Cym, o Devorador de Chamas.
Dentre tantas boas novidades, eles também trouxeram más notícias. Os nossos antigos senhores não ociosos, ao Handelhan se provar útil a eles novamente. Ele havia conseguido fabricar Avatares para os Deuses Maiores, corpos postos no mundo mortal, indestrutíveis e que os permitiam canalizar seu poder completo. Qorg e Ceret tiveram um relance do Avatar do Deus da Guerra caindo sobre um campo de batalha, assistindo como ele despedaçou um castelo inteiro com um único golpe de seu mangual.
Essa era uma notícia realmente grave, especialmente por ser seguida de sinais de que os Deuses Maiores haviam se cansado do nosso longo jogo. No fim, Qorg e Ceret não haviam retornado para contar histórias, e sim para concentrar nossas forças, com o fim de desafiar nossos antigos mestres e seu contingente de semideuses.
Capítulo 11 - O Último Sussurro dos Semideuses
Aconteceu cedo demais. Os adoradores de Pleth haviam crescido em número tremendamente, talvez até ao ponto de rivalizar o culto do próprio Deus da Natureza, mas em compensação, eu não tinha seguidores fora alguns trovadores e crianças do sul. Qorg e Ceret, embora estivessem positivamente radiantes de tanto poder, ainda não poderiam esperar derrotar ambos os Avatares e os outros semideuses, não importa o quão fortes eles tenham se tornado.
Eu soube, então, que não era questão de escolha. Os Deuses Maiores estavam chegando, e nós não tínhamos ninguém a quem oferecer nossas preces.
Qorg e Pleth não perderam tempo. Naquela mesma noite eles começaram a construir defesas; Qorg, com um de seus novos poderes, iria invocar almas de engenheiros de guerra para escavar trincheiras imensas e construir altíssimas muralhas, já Pleth fez com que sua floresta crescesse e crescesse e crescesse até que as árvores estivesses largas como casas, medindo centenas de metros de altura.
Eu lutava com o controle das chamas, coisa que se provou mais difícil que simplesmente as comandar para fazer o que eu queria. Mais que qualquer coisa, eu tentava mover ou fazer chamas crescerem, mas acabava por extingui-las. Ao final da semana, tive que me consolar com a ideia de que apagar incêndios poderia ser tão útil quanto os criar.
Se tivesse mais tempo, eu adoraria ter aprendido a criar incêndios infernais, mas os deuses não eram assim pacientes. Os ouvirmos chegando de centenas de quilômetros de distância, uma grande procissão digna dos poderes que governavam o mundo.
As defesas de Pleth e Qorg eram impressionantes, principalmente considerando quão pouco tempo eles tinham. Árvores gigantescas caminhavam por imensas colinas como gigantes vagarosos, cada uma equivalente a um pequeno exército. Somado a isso, tínhamos um pequeno exército também, sob a forma de esqueletos habitados por almas de guerreiros caídos, trazidos de volta ao mundo mortal por Qorg. Animais de todas as espécies haviam se juntado, e ainda tínhamos os guerreiros-sacerdotes de Ceret operando catapultas e balistas.
De pé no telhado de seu templo, Pleth observava o horizonte, lendo os ventos e ouvindo o piar dos pássaros. A seu lado estava Ceret, com seu arco em mãos, e uma muralha de flechas ao seu dispor. Qorg havia corrido até a vanguarda, sem nem se preocupar com dizer adeus, e eu estava no pátio do templo, desesperadamente tentando fazer algo que sequer remotamente se parecesse com uma bola de fogo.
A batalha se iniciou rapidamente. Semideuses, a maioria servos da guerra, combatiam animais, árvores, esqueletos, o vento em si, e ainda uma chuva de flechas e pedras. As lutas de cada um em si já dariam poemas épicos, mas a maioria sequer conseguia chegar a menos de um quilômetro do templo. Os poucos corajosos que conseguiam, eram sumariamente eliminados pelas flechas de Ceret, que sempre acertavam o alvo, e que agora também explodiam em contato.
Quando Ceret apontou que já tinha matado o mesmo semideus voador quatro vezes, eu quase caí em prantos por conta da implicação. Não importa quantos matássemos, eles simplesmente retornavam pouco tempo depois, intactos e descansados, enquanto as nossas forças eram gradualmente consumidas.
Se tínhamos qualquer chance de vitória, ela estava em Qorg. Lutando na vanguarda, ele saíra com um conjunto de agulhas dos matadores-de-deuses, e estava as usando com velocidade.
Quando ele voltou de lá, eu quase não o reconheci, pois ele tinha mais de 3 metros de altura e tinha um par a mais de braços. Ele só ficou ali por tempo o suficiente para se armar com mais matadores-de-deuses, e brevemente retornou, com sua clava gigante de ferro em uma mão, e uma boca gritando sem parar na outra.
A próxima vez que o vi, achei que ele tinha roubado o poder de voar. Quando ele não desacelerou e atingiu a parede do tempo, entendi que ele havia sido arremessado. O Avatar da Guerra não estava longe, girando seu mangual dourado em ameaça enquanto ele saltava.
Corri até Pleth, para tentar fazê-lo ajudar Qorg, mas ele já estava lutando sua própria batalha. O Avatar da Natureza invocara feras de tempos imémores, que devoravam os animais de Pleth. As árvores gigantes murchavam e apodreciam conforme se aproximavam, e até as flechas de Ceret se tornavam flores inofensivas ao atingi-lo.
Eu fiz com que os guerreiros-sacerdotes de Ceret desejassem vive ao invés de lutar, mesmo sabendo que nesse momento suas vidas já estavam perdidas. Enquanto eu observava horrorizado, cada um deles encontrou um parceiro, e com pouca cerimônia, se apunhalaram um ao outro até a morte.
Uma bela maneira de anunciar a chegada do Avatar do Desejo.
Ele havia escolhido a forma de uma bela mulher, e com um mero aceno de sua mão, ele me compeliu a me ajoelhar perante ele. Eu caí de joelhos de imediato, mas conforme ele se aproximou, joguei meus braços para frente, fazendo todo o fogo que consegui.
Não foi suficiente nem para queimar uma mecha de seus cabelos longos ou seu véu branco, e não foi necessária nenhuma compulsão para me dizer para parar. Quando ele se aproximou, mais belo que qualquer coisa que eu pudesse imaginar, ele simplesmente me tirou o fôlego.
Eu não ia morrer disso, afinal um semideus não precisa de ar, ou mesmo água, ou alimento, mas a dor nos meus pulmões continuou a aumentar até que pareceu que eles estavam em chamas. Eu derramava lagrimas em silêncio por não conseguir gritar, e o deus que eu já chamei de meu deus, me agraciou com o mais belo risinho que eu já ouvira.
Ele estava se divertindo com a ideia de que eu já havia conseguido resistir suas compulsões uma vez. Lá estava eu, não mais seu servo, sem conseguir resistir mesmo a mais simples sugestão, mesmo ao custo de uma dor terrível.
Para o meu horror, enquanto permaneci ajoelhado perante seu Avatar, Qorg foi jogado na minha frente, todos os seus braços tendo sido arrancados de seu corpo. Ele jorrava sangue de incontáveis ferimentos, com sua clava de ferro atravessada em suas costas, partindo em duas a sua espinha.
Já o Avatar da Guerra não parecia ferido, rindo conforme ele casualmente caminhava, pegando Qorg por sua perna e começando a girá-lo. Com um leve movimento do seu pulso, a perna de Qorg se separou de seu corpo, que por sua vez saiu voando até a floresta. O Avatar da Guerra soltou um assobio baixo ao soltar a perna e correu na direção do que restava de Qorg.
Um final digno para todos nós, presumi. Nem queria imaginar o que estava acontecendo com Pleth nesse momento, nem gostava do possível destino de Ceret. Perdemos, e iriamos perder tudo, inteira e completamente. Tudo porque desejamos poder além do nosso alcance.
Em pura agonia, eu passei direto pelo desespero e passei a buscar o puro oblívio, rezando para o Deus do Desejo simplesmente me matar de uma vez. Mas o Avatar continuou a me assistir enquanto eu fazia movimentos patéticos de sufocamento, às vezes me oferecendo pequenos risos, que soavam cada vez menos doces.
Mas, enquanto eu continuava a pedir pela morte, o desejo pareceu evaporar lentamente de mim.
Pelo menor e mais puro momento, eu achei que estava sendo inundado por esperança, e estava prestes a abraçá-la de todo o coração. Mas eu não tinha perdido a cabeça, nem a dor agoniante, fora que eu já tinha sido um semideus do desejo por tempo demais para saber quando meus desejos estavam sendo manipulados.
O Avatar do Desejo não queria que eu desejasse morrer com tanta intensidade. Ele não queria que eu quisesse morrer. Ele não queria que eu morresse.
Eu não sei por quê. Honestamente, não posso dizer que me importei. Talvez fosse por querer me torturar por mais um tempo, ou por talvez, bem no fundo, ele realmente se importasse comigo e quisesse ser meu melhor amigo.
Tudo que sei é que, se ele desejava algo, qualquer coisa, eu iria fazer meu melhor para negá-lo.
Lutei através da dor, sabendo que isso era bem mais fácil que tentar resistir às compulsões do Avatar, sofri para formar uma única imagem na minha mente. Felizmente, não foi muito difícil, já que já parecia que meu peito estava pegando fogo.
Assim que explodi em chamas, permaneci no mundo mortal só por tempo o suficiente para ver o olhar de choque do Avatar.
Capítulo 12 - O Alvorecer da Mudança
Estava agradavelmente fresco quando acordei e fui surpreendido por ver Handelhan de pé ao meu lado. Não pulei ou gritei, nem sequer me levantei para criar distância entre nós. Só me sentei calmamente, olhei para ele e disse “olá”.
Ele me ofereceu a mão, a qual aceitei, e conforme ele me ajudou a ficar de pé, perguntei o que iria acontecer agora.
Antes de dizer qualquer outra coisa, ele me perguntou se eu vim para cá porque me lembrava do que ele disse três séculos atrás, sobre como estar nos Salões dos Imortais frequentemente oferecia oportunidades a um semideus quando ele não tinha nenhuma em outros lugares. Eu menti que sim.
Agora sorrindo, ele explicou que os Avatares foram projetados para que uma parcela do poder de um Deus Maior, junto de sua consciência, fossem enviados ao mundo mortal. Isso significava que o restante do seu poder ficara no mundo dos deuses. Ele, na verdade, tinha sido posicionado nos Salões, junto de um grupo de semideuses, para defender os corpos indefesos. É claro, nenhum desses semideuses sabia que ele tinha as habilidades de Brask.
Foi talvez a primeira vez que eu genuinamente quis ir aos Jardins do Desejo. Lá, o imenso corpo de um Deus Maior dormia no divã. Aproveitei o momento para perguntar por que ele não simplesmente acordava. Handelhan sorriu, e disse que ele levou um bom tempo desenvolvendo esses corpos de Avatar quase indestrutíveis, então daria trabalho para os deuses se matarem. Sorrindo, Handelhan tirou uma adaga das roupas, a cobriu de um líquido negro, e apunhalou o coração do Deus do Desejo.
Houve um jorro de líquido brilhante, e de relance parecia estar indo em direção a Handelhan, mas como que se tivesse sentido meu cheiro, o jato se curvou no ar e me atingiu. Conforme continuava a fluir do deus-cadáver, eu senti um poder além de tudo que se conhecia, além de todas as palavras.
Quando terminei de absorver o poder, percebi que os Jardins haviam mudado. Não mais barulhento e tropical, agora era uma serena clareira com algumas árvores aqui e ali. Handelhan me encarou, e eu procurei no seu coração, descobrindo o mais puro de seus desejos, e com um mero pensamento, Cymdra apareceu perante ele.
Embora a reunião deles tenha sido tocante, eu era um mil bilhões de milhões de sóis de pura energia, e tinha uns assuntos a tratar.
Trocando o desejo de Handelhan para um mais urgente, nós corremos até a Biblioteca do Conhecimento, onde o Deus do Conhecimento residia.
Ele me disse saber que eu viria. Disse também que sabia que Handelhan iria traí-lo, e que sabia como o final de uma batalha entre o conhecimento e o desejo seria.
Ele sabia de muito, que foi o motivo dele nem se incomodar em resistir enquanto Handelhan o executou e absorveu a sua essência.
Handelhan começou imediatamente a gritar sobre o quanto ele sabia, e como eu deveria estar absolutamente impressionado. Quando eu consegui o acalmar, perguntei se ele sabia qual era o nosso próximo passo. Ele disse que seria mandar Cymdra para o mundo mortal, fazê-la matar Qorg e Pleth antes de os Avatares terem tempo de perceber o que estava acontecendo, para ajudá-los a obter o poder que eles buscavam há tanto tempo.
Antes de podermos nos parabenizar, nos encontramos no interior de uma imensa câmara, com paredes que se elevavam além do espaço, e um teto que também poderia ser o chão. Lá, os outros Deuses Maiores tinham se reunido, e começaram a nos julgar um a um.
Todos os nossos atos, nossos pensamentos, nossos sonhos e desejos. Tudo foi posto à vista perante os Deuses em um instante, eu talvez em uma eternidade. Foi então que os Deuses Maiores começaram a falar como em uníssono.
Qorg havia se provado um guerreiro acima de todos, aprendendo com cada derrota e atingindo a vitória no final. Quando os Deuses se perguntaram se ele deveria se tornar o Deus da Guerra, somente o diminuto Deus da Discórdia discordou.
Pleth quebrara muitas leis da natureza, e as nossas conquistas e batalhas deixaram cicatrizes pelo mundo. Mas, em momento algum foi se capaz de encontrar uma pessoa que tinha maior compaixão pela natureza, e que tinha maior compaixão em geral, e por isso ele foi aplaudido pela maioria.
Handelhan fez coisas terríveis, horripilantes e indescritíveis. A maioria dos Deuses estava enojada só de pensar nele, e o fato dele ter trazido a maldade destilada até os Salões dos Imortais era um crime além de qualquer punição.
Porém, ele fez isso tudo em prol do conhecimento, então foi concordado que, depois de três ciclos de eternidade no vácuo sem fim, ele seria instalado como Deus do Conhecimento. Até lá, Cymdra, uma pesquisadora quando mortal, foi vista como uma alternativa agradável, fora que seria ótimo ter uma Deusa do Conhecimento para variar.
Os Deuses Maiores pensaram que eu seria no máximo razoável como um Deus do Desejo, mas mesmo assim, nenhum deles se sentiu realmente compelido a não me deixar ser um Deus Maior. O que me solicitaram foi que eu iniciasse meus trabalhos assim que possível.
Deixamos a câmara, com uma sensação de realização radiando de nós.
Antes de ser mandado ao vácuo sem fim, Handelhan mandou alguns de seus servos para lidar com os Avatares enfraquecidos. Quase inconscientes, os Avatares não tiveram o poder para resistir quando foram arremessados na lava de um vulcão, o que Handelhan garantira que iria provavelmente destruí-los.
Qorg tomou um momento para se desculpar por sequer pensar que Handelhan jamais foi menos que um grande amigo, e então se abraçaram como irmãos. Pleth, agora jovem novamente, me agarrou pelo ombro e me puxou em direção aos Deuses da Guerra e do Conhecimento.
Nossos desafios foram apenas o começo, com todas as responsabilidades de Deuses Maiores sobre nós. Mas, como estávamos ali, com os braços um no ombro do outro, prometemos que jamais iriamos esquecer do tempo em que passamos como os quase-deuses.
FIM.