Parte 1 - Pequenos crimes
Nascido nas paredes pretas da mansão Picos de Obsidiana, em Baldur’s Gate, Toric deu azar de nascer tiefling em uma família extremamente pia. Sua pele era cinza como uma fogueira que já se apagara, e seus olhos, estranhos, com pupilas quase prateadas, mas ainda assim opacas, em sua testa pequenos projetos de chifre já brotavam, e na base das costas, uma cauda se contorcia em movimentos estranhos. Nasceu com saúde, pois chorou depois do parto, mas quem o acolheu não foi a mãe, que o olhava com desespero. “Essa coisa saiu de dentro de mim!?”
Como consequência disso, ele foi confinado desde criança, isolado no quarto mais alto da asa oeste da mansão para evitar envergonhar seus pais, por terem tido um filho meio demônio.
Seu quarto era o topo de uma pequena torre, um cômodo apertado com uma única janela gradeada, usado como armazém até o esvaziarem e o colocarem lá, junto de uma cama de palha e uns brinquedos velhos. Era alimentado pela ama de leite Devna, uma gentil senhora humana. Era ela a sua única amiga naquele quarto velho.
Ele passou a infância de modo solitário, somente interagindo com Devna e alguns dos filhos dos criados que conseguiam se esgueirar pelos guardas para ver a criatura presa na torre. As crianças se tornaram boa companhia depois que perceberam que Toric era uma criança como elas, apesar da espessa porta de madeira que os separava.
Jogavam jogos com regras sempre mudando, as tolas brincadeiras de uma criança. Acabara que ficou grande amigo delas, e sentia a sua falta quando partiam. Os anos passaram lentamente, nos quais aos poucos Devna ensinava o jovem Toric a ler e escrever. “Nenhum Armater vai ficar analfabeto enquanto eu estiver viva.”
Como já era certo, Toric não ficaria preso naquela torre para sempre, por mais que esse fosse o desejo de seus pais. Gorges, antes uma criança, agora quase um homem feito com seus 13 anos, acaba se tornando o seu melhor amigo. Foi ele que ensinou Toric a abrir a fechadura da sua prisão sem usar a chave. As antigas brincadeiras de andar silenciosamente pela mansão aos poucos evoluíram para um roubo de comida aqui, o sumiço de um colar brilhante ali… Não que Toric tivesse qualquer uso para nada disso, mas ele gostava do esporte. Devna, mesmo mais velha ainda o alimentava, trazendo restos da comida dos serventes do castelo, e lhe contando do mundo.
Mas Gorges era ambicioso, o rapaz era um humano esbelto, cresceu nas ruas de Baldur’s Gate, até ser pego roubando um filão pelo mordomo chefe da mansão e ser chamado a trabalhar, com direito a comida e cama. Mesmo com a mordomia de não ter que se preocupar com a refeição do dia, Gorges gostava da adrenalina de seus pequenos furtos, algo que Toric aprendeu rápido. Mal podia esperar pela próxima chance de sair escondido com seu parceiro de crimes.
Cada vez mais audaciosos, não ficavam presos apenas a própria mansão, mas eles entravam de fininho nas mansões de praticamente todos os casarões do bairro Manorborn.
Tudo ia bem, até que em uma noite que parecia uma qualquer, o par foi particularmente ganancioso, e tentou tirar um diamante de um busto incrustado com jóias da mansão dos Elkosts. O maldito busto caiu no chão e se espatifou, fazendo barulho o suficiente para acordar todos até as muralhas. Já com as mochilas cheias, os dois partiram em fuga, mas ao descer as escadas, Gorges olhou para Toric, e o empurrou escada abaixo. A queda desacordou o jovem tiefling.
Parte 2 - Mais uma prisão
Os Elkosts eram famosos por terem muitos membros da família na corte, e quando Toric, já com seus 15 anos, foi a julgamento, quase foi condenado à morte. Foi apenas por conta de uma intervenção de Devna que ele foi condenado a vida na prisão de Forte das Estepes. Sinceramente ele não sabia qual era pior… Pelo menos teria companhia.
A cela da prisão era ironicamente mais espaçosa que seus primeiros aposentos, e o pessoal de lá no geral não era tão mal. Vários punguistas, pequenos arruaceiros, alguns pregadores ilegais e até uns piratas formavam o grupo de pessoas que realizavam trabalhos forçados com ele. Aos poucos foi pegando seus maneirismos, aprendendo com suas histórias e recebendo lições dos mais pacientes.
O maior deles foi o amniano Armontes, o draconato duelista de escamas vermelhas, que foi preso por ter passado a noite com a esposa de um juiz. Ele era bem amigável, e, a pedidos de Toric, começou a ensinar a dança das lâminas ao rapaz. Toric aprendeu rápido, já que tempo era tudo que eles tinham, e os treinos eram intensos. O draconato, porém, não fazia isso somente por caridade. As suas segundas intenções foram claras desde o início: ele precisaria da ajuda de alguém que ele confiasse para conseguir escapar desse inferno.
Não demorou até que começassem a armar um plano de fuga. Pensaram em tudo com cuidado através de meses e meses, avaliaram várias possibilidades até chegarem em uma que fosse garantida. No fim, foram anos de planejamento até que eles chegassem a um plano final. Estava longe de ser perfeito, mas estavam sem tempo, afinal Armontes estava doente, e se continuasse preso, não iria sobreviver por muito tempo. Ele precisava de uma cura que jamais receberia enquanto encarcerado.
O primeiro passo era simples. Teriam que conseguir disfarces de carcereiros. Por sorte havia dois guardas novatos que seriam perfeitos. Ambos foram desacordados usando os pés de uma cadeira convertidos em porretes e sequentemente despidos. Toric e Armontes vestiram seus uniformes.
O próximo passo era causar uma rebelião, afinal eles precisavam do caos para os próximos passos. Foi relativamente fácil, se um tanto arriscado: um dos anões encarcerados havia se tornado o líder de uma facção de prisioneiros, então para provocá-lo no dia certo, bastou usar uma faca improvisada e muita paciência na noite anterior. Essa parte ficou com Armontes, suas mãos leves tinham décadas de experiência, então bastou meia hora para que toda a barba do orgulhoso anão estivesse por todo o chão. Havia dado certo, pois assim que nocautearam os guardas novatos, os ruídos de gritaria e violência já haviam começado pela prisão toda.
O terceiro passo era raptar o diretor da prisão, um verme nojentinho em forma de gnomo, sempre com seu bigode grisalho, fino e ensebado e sua cara de nobre repugnante. Fibnato era seu nome, e seu ego com certeza não cabia em sua estatura. Por conta disso, gostava de microgerenciar tudo na prisão, e era exatamente isso que seria sua perdição. Conforme previram, o diretor já estava na varanda de seu escritório com vista para o pátio, de onde rosnava ordens e profanidades. Toric e Armontes adentraram a sala do diretor que continuava a esbravejar. Disfarçados de guardas, mentiram que descobriram um guarda em coalizão com certos prisioneiros, que estavam a abrir uma velha saída para os mesmos escaparem. Foi muito fácil, com a desculpa de levá-lo até os guardas amotinados, nós o levamos até uma cela, onde já havíamos deixado panos e corda. O amarramos, amordaçamos e pronto, tinham o seu refém perfeito.
O quarto e último passo era escapar, usando o seu refém para garantir a própria segurança. Ele se debatia como uma barracuda recém pescada, muito forte para seu tamanho, mas os dois foram o suficiente para se carregá-lo. Com a maioria dos guardas no pátio tentando controlar a rebelião, chegar até os portões foi rápido e sem incidentes. Já na sombra dos portões, bastou uma ameaça à vida do diretor para que os guardas abrissem os pesados portões e os deixassem passar. Nesse ponto o plano era pegar alguma carruagem e se livrar do diretor no caminho.
À frente deles estava seu objetivo, a carruagem do diretor, já pronta para a partida. De costas para a mesma, e usando o gnomo como escudo ante as flechas dos guardas no topo das muralhas, e com a faca improvisada no pescoço do diretor, o par foi cautelosamente se aproximando. Infelizmente o diretor era mais insistente do que foi previsto, ele se mexia tanto que sua mordaça se soltou. “Seus inúteis! Eu não ligo de morrer, só não deixem esses marginais escaparem!”
Os guardas como que por instinto, obedeceram de imediato. O zunido das flechas voando já ressoava por volta de Armontes e Toric, e nesse ponto ambos jogaram seu refém na direção das flechas e correram na direção da salvação. A saraivada de flechas não parava, uma já atingira Toric no braço, mas o importante era chegar até a carruagem. “Matem esses cavalos!” A voz esbravejante de Fibnato ecoou estridente, seguida de ainda mais flechas.
Estava tudo em câmera lenta, Toric chegou até a carruagem, quando viu que um dos cavalos já jorrava sangue por um furo na jugular onde uma flecha havia se fincado e pendia para o lado, morrendo. Em desespero, ele olha para trás para se consultar com seu mestre e amigo, quando viu que o mesmo estava no chão, metros atrás, perfurado por várias flechas ao longo do corpo.
“Pega o outro cavalo!!”
Mal teve tempo de seus olhos se cruzarem, e o draconato já urrava com suas últimas forças. Ele arremessou a faca improvisada para de Toric, que a pegou no ar. Em um segundo de hesitação Toric ponderou: não queria ir sem o mestre, o que fez com que o jovem começasse a dar meia volta, mas antes que sequer desse um passo, a voz rouca de Armontes voltava a urrar.
“Vai embora logo, vai sem mim porra! Moleque! Se você ficar aqui eu juro que te mato!!”
Engoliu seco, mas relutantemente voltou sua atenção à carruagem. Cortou rapidamente as tiras de couro que prendiam o segundo cavalo à carruagem e montou sem jeito partindo por um triz, deixando para trás seu amigo e mentor para a morte. Ele cavalgou por horas até chegar de volta a cidade durante a noite. Nas favelas de Baldur’s Gate Toric se livrou do uniforme de guarda manchado de sangue e roubou uns trajes que secavam em um varal desprotegido, procurando se misturar à multidão.
Parte 3 - Enfim livre
Passaram quatro anos desde que Toric escapou da prisão, após alguns entraves na cidade, ele se mudou, e passou a ganhar a vida trabalhando com alguns bicos na estalagem Braço Amigo usando os talentos que adquiriu durante seu tempo com Armontes. Tentou evitar os crimes desde aquela época, não por bondade ou qualquer noção tola assim, mas por simplesmente não querer voltar para prisão, afinal o rapaz prezava sua liberdade acima de tudo. A vida ia bem, mas ainda assim sentia uma leve fisgada no peito sempre que precisava se exaltar. Nada preocupante, mas ainda assim irritava.
Mas aquilo não parava. Nunca o atrapalhou, mas de pouco em pouco sentia essas fisgadas aumentando. O mistério do que era isso durou até a visita de um clérigo de Pelor pela estalagem. Ele examinou Toric e revelou que ele possuía a mesma doença de Armontes. “Foi isso que ele quis dizer que ia me matar se ficasse…”
Essa doença se desenvolvia lentamente, mas certamente como o sol nasceria no dia seguinte, ela causaria uma parada cardíaca. O clérigo fez o que pode: retardou a doença para que Toric ainda tenha mais uns anos de vida, e com o poder lhe concedido pelo Deus Sol, fez com que a doença deixasse de ser contagiosa. Como não queria passar essa maldição para outros, era um peso a menos na mente do rapaz, mas agora sabia que estava morrendo aos poucos. Ao clérigo ele perguntou sobre a cura que Armontes alegava que existia, e o mesmo afirmou que não tinha conhecimento de nenhuma cura, nem sabia direito o que era a doença em primeiro lugar, mas se tinha algum lugar na costa da espada que teria esse conhecimento, esse lugar era o santuário do conhecimento, o monastério fortificado de Forte da Vela. Toric partiu de imediato.
Toric foi recebido pelos monges, mas lhe foram impostas condições: somente em troca de estudar o desenvolvimento dessa doença rara, e fazer mais umas tarefas aqui e ali, os monges o tratariam. E então por lá ficou desde então.